sexta-feira, 10 de maio de 2013

eu que já me transformei em mais de uma forma de não caber


I

Quando nasci, lembro de não ter gostado muito daqui. Havia barulhos sem nome e o cheiro da panela de pressão, dos feijões que alimentavam as cuidantes, me enjoava os recentes olhos. Um dia, duas pessoas chegaram. Uma tinha cheiro de limão europeu, outra, de folhas verdes por dentro. Juntas eram quase um limoeiro. Me fui com elas. A casa era grande e as paredes altas escondiam o frio no inverno. Primeiro olharam para mim, acho que mais especificamente para meus dedos esquerdos, e disseram “Antônio”. Depois os olhares vieram para meu rosto. Meu nome ficou “Augusto”. Nessa época que fui Augusto eu podia rir em qualquer altura. No verão, íamos passar as férias em Petrópolis. No quinto verão que viajávamos, tinha um caminhão. Lembro dos limoeiros quebrados, um cheiro de ácido muito muito forte. Eu pequeno fiquei bem. Até hoje não posso chegar perto de alguns tipo de frutas. Depois de um tempo, conheci uma mulher com cheiro de queimado. Me mudei para sua casa. Ela poderia ser sozinha em muitos sentidos. Não trabalhava, acho que vivia de alguma pensão do governo, gostava muito de tomar remédios e fumar, e de vez em quando chorava em frente a um retrato muito bem emoldurado. A mulher gritava “Henrique”. Entendi que era para mim. Por 12 anos a mulher gritou “Henrique”. Como não havia ninguém mais na casa eu respondia. A casa tinha tempestades estranhas, ondas de calor que vazavam precipitações. Às vezes algo se transformava em chama, por exemplo, um tapete: virava faísca e desaparecia. O mesmo aconteceu com a mulher. Cada vez ela ficava mais quente, e aquele cheiro todo, cada vez mais. Então chegou o clarão e puff. Doeu os olhos, claro. Ainda doem. Ontem li num  outdoor “Romero”. Mas hoje penso em “Felipe”. Talvez “Gustavo” combine melhor comigo.


II

Já fui músico. Já gerenciei um negócio próprio na avenida São João. Nunca tive filhos, talvez, porque nunca conheci meus pais. Às vezes quando o silêncio escapa (vezes que não me organizo bem) sinto o estômago doer. O médico já disse, é preciso parar de beber e fumar, porém, como sou só eu não há ninguém para me dizer isso dia sim, e dia também. Meu estômago tem o formato de um canhão e quando me aborreço muito ele possui os poderes de um canhão. Depois de algum disparo e cheiro de pólvora, olho para a rua e só vejo mulheres. Penso nas vidas que poderia deixar no meio de seus quadris, penso em crescer em suas barrigas, nos pais que não conheci virarem uma montanha no centro de seu umbigo. Mas no fim, todas elas me lembram minha mãe. Eu não conheci minha mãe. Quando quero diversão, passo por algum menino e deixo respingar que em casa tenho um pó bem branco, branco bem bom. Ignoro meu estômago. Geralmente dá certo.


III

Foram vinte dias. Uma vez eu fui vinte dias. Não cheguei nem a ser mês. Não cheguei nem a tatuar algo ao invés dos olhos. Meus pais pareciam bonitos, através dos vidros. Pelo rádio, escutava coisas engraçadas como a fuga de um tal leopardo de um tal cativeiro, de um tal zoológico. Leopardo para mim é um bicho gordo e bem fofo que tem braços bem longos para agarrar tudo. Mas eu tinha um coração fraco, síndrome com nome difícil. Melhor assim. Pior para os leopardos.



IV

Uma vez fui feliz. Por um tempo. Não posso precisar o quanto pois quando se é feliz, como eu fui, se perde essa coisa-tempo. Tocava num clube matutino, ganhava pouco, mas conhecia muita gente com quem podia trocar os sapatos, as palavras, os elogios, os significados. Um deles em especial era muito meu amigo. Quando o conheci, era cego. Nós o chamávamos de Feridinha. Feridinha começou um tratamento experimental com um médico de currículo extenso, um tal de Dr. Xavier. Se desse certo, voltaria a ter imagens novas, e com os olhos úteis poderia palpitar sobre minhas camisas de tonalidades tímidas, a decoração do bar vazia de muitas limpezas. Um dia no quarto de Rita, acendi um cigarro e deixei a mulher só com sua nudez na cama. Olhei a janela, guardadoras de restos,  partículas, depois de um tempo não adianta mais tentar limpar o vidro, fica tudo lá: a areia trazida da praia, o seu último jantar antes do vegetaranismo, os farelos da pele de alguém que antes era ótimo de tocar. Nessa confusão achei espaço para ver meu reflexo. Será que Feridinha gostaria de mim depois de me ver? Noutro dia, tirei Lígia de uma sessão de cinema. A levei para as luzes e perguntei “meu rosto, que tal para ti?”. “Assim como antes. Belo, e talvez, assustador um pouco”. Depois disso, pensei em mudar de trabalho, comprar um Opala, conhecer o centro-oeste. Algum tipo de deserto deve ter comigo alguma intimidade. Nessa época me mudei para Góias. Numa noite de altas apostas, que a bebida me tirou os detalhes, ganhei um pedaço de terra. Hoje crio cavalos. Vendo seu sêmen, coisa estranha, mas que dá dinheiro. Não costumo mais me interessar por pianos.


V

Quando eu era velho tinha horas do dia que não faziam sentido. Pela noite por exemplo, as constelações, sempre as mesmas. Monótono diria. Antes eu fumava com a lua, fazia um cigarro de maconha, ficávamos lá a ver navios de todos os tamanhos. Então cansei. Aluguei minha casa para um menino de rosto bem passado e arranjei um emprego como recepcionista em uma boate. O negócio cresceu. Quando cheguei aos meus 80 anos, de alguma forma, o lugar já era meu. Às quartas-feiras, era a noite do sexo ao vivo. Era difícil achar alguém que topassem, por isso, recorríamos aos viciados por facilidade mesmo. Um deles, por muito  tempo, ia para casa comigo. Nessa época dormíamos o dia todo, pouco sabíamos do sol. Coleciono armas, de fogo e de lâmina. Estou vivo até hoje.

2 comentários:

Unknown disse...

Lembrei de Campos de Carvalho e Hilda Hilst. E olha, são dos meus favoritos.

Nathalia Rech disse...

nossa, boas lembranças essas. fico feliz que elas vieram à mente.