Clemente,
sei que não
estou sendo muito agradável. Você está um diferente país, imerso em uma luta diária
para entender cardápios em outras línguas, tendo que acordar cedo para erguer e abaixar caixas em algum lugar perto do mar, completamente sozinho, enquanto
eu só escrevo para te atualizar de minhas últimas fúrias. Clemente, peço
que perdoe meu excesso de pele levantada. Sabe como sou sensível em encontrar
desníveis de satisfação em todo braço de semana. Como você está? Já fez algum
amigo que já saiba pronunciar corretamente nosso sobrenome? Fale-me sobre tudo.
Como de costume, escrevo desesperadamente para lhe contar algo muito incomum.
Estou visivelmente assustado e não trata-se de um simples blefe por algum tipo
de atenção familiar ou vontade de casar com holofotes. Anda ocorrendo algo
estranhíssimo, não comento com ninguém, não deixo escapar (sabe como lutei para
restabelecer laços de sanidade com o resto do mundo, não posso arriscar que
olhem para mim novamente e só enxerguem loucura). Você é meu irmão e eu não
saberia mais a quem recorrer.
Lembra quando éramos criança e alimentávamos
escondidos Clark, todo dia dávamos nossa janta para ele que morava naquele
pequeno escuro embaixo da escada? Até que inutilizada a comida começou a exalar
cheiros desagradáveis e nossos pais descobriram tudo. Clark, nosso amigo
imaginário, visivelmente abalado nos deixou para sempre e foi vender linguiças
com pão preto em alguma van de estrada na costa leste. Bom lembrei disso hoje.
Me fez pensar em como somos bons guardadores de segredos. É por isso que te
darei um pouco do peso de minha aflição agora.
Desde que você foi para a Noruega voltei ao meu
hábito de escrever. Ter você longe, e o desespero da correspondência entre nós
dois, me ajudaram a ser um homem mais tranqüilo, acalmar qualquer tremor mais
corajoso. Inventei esse gosto de ao amanhecer conversar com o gato, alimentar o
cachorro, regar o jardim e adentrar em minha escrivaninha, calmo, e cheio de
ideias. Antes escrevia apenas para você. Mas como suas respostas demoravam a
chegar, vindas do velho mundo, comecei a querer preencher mais essa satisfação.
Então me surgiu a ideia de na falta de outro destinatário, escrever apenas para
mim. Quando me sentia exausto, úmido e sem cura por dentro, fazia utilidade com
minha mesinha, meus papeis amarelados, minha caneta nanquim e colocava uma e
outra palavra na horizontal. Por fim, tal como todas as cartas, guardava meus
garranchos num envelope, decorava com selos e mandava-as para o correio.
Escrever meu próprio endereço nos dois lados do envelope era engraçado e por
mais bobo que isso possa ser, ainda sim, me dava justificativas de diversão. Seria
uma estratégia interessante para sustentar uma conversa comigo mesmo, e quem
sabe, vir a me dar reflexões valiosas que economizassem minhas preocupações. Pensar
que dali alguns dias minha caixinha de correspondências não teria apenas
cobranças, informes de liquidificadores novos e empréstimos me causava
confortos por volta do pescoço e nuca.
Para minha surpresa a pequena caixinha continuou
mergulhada em solidão (já que contas de luz e água não são companhias de
verdade para ninguém). Depois que mandei a primeira carta estranhei. Passaram
mais de uma semana e nada dela voltar. Pensei que era algum problema interno da
empresa, algum deslize no transporte, que já seria resolvido. Nessa época (fora
bem o período que deixei o escritório do Caxias e conheci Dalva) eu escrevia
muito para me desapegar de algumas tristezas inflamadas no rosto que insistiam
em praticar erupções nos piores momentos, por vezes, na hora do café da manhã
ou almoço. Mandei uma carta, depois mais uma. E nada delas voltarem. Passaram-se
um mês. Num sol de agosto, cheguei em casa depois de uma corrida (agora pratico
cooper, acho que não mencionei em outras mensagens anteriores). Dona Glaucê, a
senhora que trabalha aqui em casa nas quartas, tinha deixado nesse dia alguns
envelopes do correio em cima de uma mesa.
Reconheci um deles. Finalmente meus textos haviam
retornado. Ansiedade foi o que transportei por dentro durante aquela breve
fração de horas que fiquei aflito em saber o que eu teria dito naquelas
páginas. Eu precisava me ouvir. Ouvir é lembrar do futuro. O papel estava um tanto
amassado. Foi aí que percebi, por meio de um grande arrepio: meu nome fora
riscado, e como remetente havia um que nunca ouvi falar: Olavo Del Puri.
Rasguei o envelope imediatamente para ler o que havia dentro, e imagine só.
Meus papeis haviam sumido. Tudo que havia pensado tinha se perdido em meio a
explicações que não existiam. Ao invés
disso, havia alguns recados desse tal de Olavo, que segundo informava a
etiqueta da correspondência, aparentemente morava no mesmo local que eu. Mas
quem era esse homem e como isso era possível? Me assustei. A carta mergulhou
rumo ao chão, pois meus dedos viraram um grito. Por conseqüência de minha brincadeirinha
pessoal, acabei por dar uma grande parcela de minha intimidade a um estranho
qualquer. Eu tão contido em bocejos e suspiros acabei talhando meus
sentimentos mais enclausurados a um nome que nunca pronunciei. Vergonha
Clemente, senti vergonha e medo. Como saberia o que eu havia escrito naquela
carta? Poderia ter sido qualquer coisa. Minhas noites improvisadas com Dalva,
brincadeiras de colchão, exercícios de superação em relação ao meu medo de
gasolina e cumprimentar estranhos, meus sonhos com cenário mongol que em dias
tumultuados eu tinha durante o sono. Possivelmente nunca mais teria acesso àquelas
informações que um dia pensei serem de importância extrema. Comecei a sentir-me
manco. E observado por todas as frestas das horas.
Depois vieram mais cartas minhas, isso é, de Olavo.
Conforme me escreveu o sujeito, ele ficou muito confuso com minhas
correspondências. Quase não foram percebidas, mas quando foram, atingiram uma
alta escala de surpresa.A curiosidade o fez lê-las, e acredite só, gostou
bastante. Minhas histórias (não faço ideia das quais eram) o ajudaram muito no
momento atual de sua vida. Para ele, sou uma flutuação entre o sagaz e o
divertido, e agora, um de seus passatempos mais especiais. Deu risadas contando
aos amigos de minhas peripécias escabrosas. Mesmo esta sendo uma situação absurda,
ele admitira que nem gastara muito tempo pensando em como isso foi ocorrer, ou
como era possível. Afinal, nossos endereços são os mesmos. Para as cartas
moramos no mesmo lugar do mundo. “Prefiro apenas respeitar o mistério das
coisas e concentrar em me entreter com seu universo, seus dias, seus
pensamentos. Não posso ignorar algo que me faz tão bem ou rebaixá-lo apenas
porque não compreendo. Quando você me contou sobre aquela história do
restaurante australiano, acordei com outros olhos no dia seguinte. Também não
sou fã de lulas ou crustáceos, fique sabendo”. Mas que diabos ele estaria
falando? “Gostaria de te conhecer pessoalmente. Acho que temos muito em comum”
me escreveu uma vez.
Clemente,estou pasmo. Pipocam ignorâncias em meus
ouvidos e os passantes percebem que carrego transtornos por debaixo da camisa. Minha
voz quando sai é doída. Não sei até que ponto posso confiar na realidade de um
passeio, de um dia de trabalho, de um sonho. Não parei de mandar cartas para
mim, para Olavo. Já perdi as fronteiras. O mais inexplicável é que gosto de
conversar com ele, nos damos lindamente bem, apreciamos ambos centeio no lanche
da tarde, apostar em resultados de boxe, ler Pirandello e Calvino, essas
coisas. Mas agora te escrevo pedindo um conselho. Olavo marcou comigo um
encontro num café no centro, Alvorecer chama-se (meio brega não?), às 15 de um
sábado. Não sei vou. Não sei se não vou. O que acontece comigo é o medo. Covardia. Não sei do quê, talvez do
que aconteça, do que não aconteça, talvez do que possa descobrir, do que não
possa saber. Aliás, pode ser que o medo seja isso: algo que não se pode ver nos
olhos, assim como eu, você e todos nós, que quando sozinhos não conseguimos
apontar nossos próprios olhos para nossos rostos afim de nos vestirmos por
completos.
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