quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

uma espécie de greve de acontecimentos

Eu não tinha realmente mais nada com o que me preocupar.

Antes eu passava a maioria dos meus dias desenhando meus próprios seios, imersa em um loop de olhares entre eles e o espelho de aumento que sempre acabavam com qualquer pista do que poderia haver de errado comigo. Na minha cabeça meus seios eram a velha borra de café. Sabiam de tudo inclusive mais pra frente. Costumava deixar o carro para lavar umas duas vezes por semana com uma pretensão minúscula de organizar as estantes quebradas da minha vida. Às vezes pedia dinheiro as crianças nos parques em uma estranha inversão de papéis que servia apenas para gerar um comichão, um riso, como se eu realmente representasse qualquer tipo de ameaça a ordem do tempo, das coisas.

Mas agora isto tudo não é mais tão tudo assim. As coisas ficaram simplesmente mais fáceis no dia em que resolvi parar de falar. Nadis. Nadic de nada.

Meu primeiro pensamento após esta resolução foi escrever algumas cartas aos meus amigos no ímpeto de buscar alguma garantia para o caso de ficarem zangados ao ponto de fazem meu rosto um tutorial de auto-defesa, trazerem seus cachorros para fazer coco em meu pátio, esse tipo de coisa. Então compreendi de verdade onde estava me levando. A idéia toda de não precisar falar também consistia em não ter que dar explicações como essa. Nenhuminha.

Se não há nada mais tedioso do que não ter ninguém para conversar, ter e não falar soava uma forma certeira de alívio e excitação.

Nos primeiros dias não foi tão fácil. Nos restaurantes e cafés, havia vezes que as pessoas me tratavam mal quando não respondia suas perguntavas, apenas apontava o pedido no cardápio. No caso de tropeçar em alguma alma viva sem querer, na iminência da obrigação do pedido e desculpas eu apresentava uma expressão gosmenta com os olhos, a mesma expressão que sempre imaginei que as freiras usavam quando assistiam o jornal local ou tinham que orientar uma jovem grávida, sozinha ou sem muito dinheiro. Algumas pessoas me xingavam, outras se assustavam com as nuvens do meu rosto, fugiam, deviam achar que era transmissível.

Havia vezes em que saia para beber em algum bar apenas para manter o costume, algum homem seu aproximava, e era mágico vê-los falando sozinho, o que de fato entendi que gostam e muito. Por um dia ouve esse baixinho, com um problema na perna, que me dizia que tinha atropelado a si mesmo, coisa que não entendi muito bem. Falou muito sobre uma de suas avôs, me disse que eu lembrava muito ela, não sei se pelo fato de ouvir ou não falar nada já que os mortos não falam, depois me agradeçou com um abraço e foi embora para aqueles lados dos quais nunca mais vi.

 

Claro que havia também outros que muito irritados ameaçavam estourar os copos do balcão apenas com uma promessa, mas logo o bartender os dizia, “esta aí tem um problema, esta aí é muda” e eles mudavam o olhar para um celeiro de piedade, seus rostos eram um feno fofo, ficavam os cabeças cheias e tiravam seus chapéus logo em seguida.

Há pessoas que param de falar por traumas. Histórias nefastas, de morte e dor. Seria como um acidente de carro, perder uma perna, um acidente de trabalho, perder um braço. Assim é a voz, nosso complemento de corpo invisível e gozado. E também há pessoas como eu. Que fazem disso uma escolha por simples tédio.

Então teve um dia que eu tinha que dar uma palestra. Uma aula na universidade.

Uma vez a cada seis meses eu sou convidada por uma amiga para conversar com os alunos de sua classe, que recém adentraram na academia. Não sei por que – além do fato dela gostar de mim – o qual o motivo teria de alguma penca de jovens ficarem me ouvindo falar por uma hora com seus rostos esfolados pela não escolha e pura piedade. Normalmente, eu os mostrava fotos do tempo em que trabalhei com Figaro Valério, um conhecido escultor de perucas, isto ainda na minha adolescência. Houve um tempo em que tentei de todo modo me tornar uma artista, um tempo no qual Figaro fez parte, minha amiga fez, meu ex-marido, e até meu último cachorro.

Minha amiga insistiu para eu ir e eu fui. Depois de dois dias na casa dela descobri que nunca parar de falar pode ser considerado um ato egoísta. Matilda falava sem parar da sua vida, do amante armeno que fazia um barulho sexual de máquina industrial (da revolução a vapor), as fofocas dos colegas em crise de meia idade com nudes circulando entre iphones de alunas, do fato da filha não falar mais com ela depois que votou do Partido Liberal. Era uma mulher pelo menos, diz minha amiga, tu sabe muito bem que nos outros ano eu votava em quem era bonito. Na dúvida, todos os navios no bonitão! Este era meu lema, lembra? Nunca comi tanto escondidinho na vida com tipos de soja diferente isso posso dizer. Na hora de dormir lutava para encontrar minha própria voz na minha própria cabeça. O agudo cortante deminha amiga vinha com tudo nos olhos fechados e se misturava com o timbre do garçom falando de como as laranjas vieram do oriente-médio, misturava-se com meu porteiro desabafando com o genro e a síndica gritando sobre os pingos dos ares condicionados em sua voz cavernosa. Fiquei levemente agoniada, pois me dei conta que não só havia parado de falar mas também parado de pensar estar falando. Parado de pensar em mim na primeiríssima pessoa.

A palestra foi sem dúvida inesquecível. Minha amiga fez questão no inicio de dizer que eu estava fazendo um experimento artístico, sendo em uma artista que me entregava de corpo e alma para o trbalho prático e teórico, já estava no nono mês de minha investigação, uma vez que não me considero uma artista, mas não poderia falar nada porque não falava mesmo. A aula magna era sobre jornalismo e não tinha nada a ver com arte era isso que eu queria dizer se pudess jornalismo não tem nada a ver com arte, então, mostrei algumas sessões de imagens que eu mesma tirei durante meus anos trabalhando em redações. Eram de meus colegas de trabalho em seu local típico, mortos de cansaço, corroídos pela rotina, dormindo em cima das mesas, com olheiras, devastados por café, cigarros e péssimas noções de estilo. Numa das fotos meu colega Barney o correspondente de Washignton que usava nossa sala emprestado pela filial comia um hamburguês com uma mão enquanto segurava o telefone na outra e em sua camisa o katchup e a mostarda se encontravam. Ao fundo havia o calendário escrito 31 de dezembro e um relógio marcando 00h23, uma redação vazia e escura. No ultimo slide eu botei uma frase bem besta escrito “me contem essa história, me falem de vocês” pela motivo maior da preguiça de ter que desenvolver algo sem poder falar.

Mas logo logo entendi onde me meti. Minha amiga me usou para sua rinha de alunos ansiosos e ambiciosos, aqui está meus caros, treinem suas táticas. Como entrevistar alguém que diz nada? Alguém que se recusa a falar? Aumentem suas técnicas! E os alunos não paravam com novas táticas de persuasão que vinham desde elogios estendidos como adorei como você trouxe o jornalista como o personagem da noticia e tratou do tom pessoal e subjetivo como necessário para a atribuição de sentido e autentificacao da verdade na era da pos-verdade, ou criticas ao capital humano explorador das grandes fabricas de noticia, ou, também, como alguns tentavam me fazer abrir a boca com insultos e jogos psicológicos, citando historias escabrosas que encontraram de mim na internet e todos meus relacionamentos falhados para me tirar do eixo. Ninguém falou de si como pedi, mas duas semanas depois, minha amiga confessou que 4 largaram o curso.

Voltei para casa irritada e com menos vontade ainda de abrir o bico.

Algumas semanas se passaram e a vontade de falar não era mais uma decisão mas falta ed vontade mesmo. Cada vez mais as palavras não vinham e eu parecia estar loge de mim e longe ate mesmo do vocabulário do silencio. Eu estava em lugar algum. Podia passar dias vendo os carros da minha janela e olhando as nuvens do céu sem nenhum pensamento sequer na cabeça eu nem saberia dizer se seria capaz de emitir um som novamente, se minha voz seria a mesma. Eu já não escutava mais nada, apesar dos barulhos, das pessoas me dizendo coisas. E eu estava com medo, cada vez mais medo do que poderia sair de minha garganta, do que finalmente poderia sair, se fosse grande, entalar, no meio do pescoço uma palavra no meio do caminho.

E foi esse o dia em que resolvi aprender a falar italiano e fazer o que todos nós fazemos inconscientemente mas não consicentemente como eu, isto é, desviar a atenção colocando a cupa de algo em um objeto que não tinha nada a ver, isto é, o português, a nossa língua. Com a ajuda de um tutor, muito chá de capim e sorvvete de pistache depois, meditação, ajuda médica e técnicas de resiração depois, consegui falar pela primeira vez depois de um ano e meio. Qué facho Pascole, eu disse a meu tutor, que me olhou incrédulo como se eu o tivesse agora roubado sua voz.


2017-2021.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

hoje é feriado internacional da espinha no meio da testa

A sua irmã se mantém quieta na maior parte do tempo

Ela empilha uma risada na outra como um tropeço no rosto e quanto cai vira uma gargalhada

Escuta atentamente os convidados falarem eles são mais velhos que ela embora usem roupas parecidas com a dela

eles leram os mesmos livros que ela está lendo embora por motivos completamente opostos

mas isso não parece ter nenhuma diferença claro sim há uma tristeza ali uma tristeza que aparecerá mais adiante porque a tristeza é assim ela vem aos poucos submergindo de forma indireta por tudo que é direto não pode ser falada pois é um testemunho fechado

Eram umas seis pessoas ali bebendo cerveja e fumando maconha enquanto as ruas estavam fechadas devido ao golpe de recolher

Golpe de recolher? essa palavra não existiria ainda

Toque de recolher não alguém grita muito menos Golpe de recolher porque hoje é feriado internacional da espinha no meio da testa sagrado em todas religiões adoradoras de cristo e nike

Feriado que nada diz outra pessoa fechando um tabaco

Soou a sirene e nesse exato momento mísseis serão disparados para um país que não é o nosso mas que fica ao nosso lado mas um país não costuma ser confiável ao passo que um míssel é e assim finalmente saberemos onde estamos

Um país é uma ameaça localizada será que isso cabe em uma gargalhada lustra-móveis

Ela não entende porque eles bebem tanto será que não percebem que nas fechaduras dos olhos no lacre da boca a pele começa a ceder e isso tem a ver com os copos as garrafas  a cerveja de noite de dia sozinhos juntos mas principalmente e muito sozinhos as olheiras são a contrapartida a pele amarelada e fina a ponto de se rasgar por nada

E a velhice talvez seja isso fazer a mesma coisa sem parar até o corpo ir se deteriorando e a bebida é uma corcunda por dentro também E a velhice talvez seja não o fim da juventude mas o desejo do fim dos jovens das vontades jovens dos novos medos

Seus amigos só bebem eventualmente em uma festa ou outra é necessário um contexto para as fotos para os vídeos é necessário confiança e uma dose de responsabilidade Sua geração gosta da organização pois nasceu em uma linha do tempo não metafórica Em 2001 estou pelado e cheio de meleca no facebook de meu pai

Ela dá um pega no base e agora para de rir alguém decidiu falar sério ali e ela está com dificuldade em se concentrar

Porque está de saco cheio do trabalho no estágio e hoje de repente entre uma torrada com ovo e um chá de hibisco as palavras de Marlene onde estão os papéis veio com tudo em sua cabeça significando também os papeis de cédulas de dinheiro os papeis dos cartórios de nascimento e de noivado os papeis de todas notas fiscais preciso organizar minha vida e talvez ela não perceba na hora mas foi uma crise de ansiedade das grandes que levará para a análise Meu papel social Meu papel amoroso O papel no país está acabando vem da Argentina e eles cobram um bocado

Alguém falou algo sério

O pai está no hospital e teve um sonho com seu pai se despedindo

Ele falou isso do nada enquanto comia uma fatia de pizza de Marguerita

Ela não costuma ligar para sonhos embora acorde impregnada em seu capuz e chore por um pesadelo o resto do dia ou fique feliz sem entender qual é a ligação depois de acordar e a nuvem do sonho dure o dia inteiro Ela costuma não costuma ligar para sonhos dessa forma:

Como sinais divinos

Contatos extraoficiais

Previsões misteriosas

Contatos do além

Benções

Mas o que a deixou levemente consternada foi o jeito que ele falou bebendo aquela cerveja e de formas despretensiosa mas depois ela sacou rapidamente não era desdém

Mas era a única forma que ele conseguiria falar disso

Bêbado e no meio de uma conversa sobre animes e os memes do presidente da república se ele fosse um personagem de bob esponja

A única forma de falar ela pensou

Quieta enquanto observava o que cada um poderia dizer  esquecer de dizer dizer sem querer ou por muito querer

Enquanto a rua lá fora não tem carros apenas sinais de luz silenciosas como estrelas vindo de outros apartamentos apartamentos que parecem tão longe quanto qualquer outra estrela no céu Altair Beltaguelse Alfa Centauri os Carros do passado da galáxia são tão bonitos

Os carros já são coisa do passado

E cachorros vasculham qualquer falta de movimento como liberdade

E as árvores parecem mais cheias que de costume

E o barulho é coisa muito íntima que acontece apenas muito dentro muito perto dentro dentro

É porque há uma doença misteriosa lá fora deu no jornal alguém diz

É porque o asteroide Eric Clapton talvez caia ou não esta noite mas é provável que sim e é homofóbico isso um asteroide chamado Eric Clapton ou é uma coisa boa afinal? Por dúvida ficamos em casa

Porque há uma outra espécie

No planeta

Não detectada e pode ser tóxica mortal para nós

Ela checa o horário porque está ali mesmo? Prometeu que viria e dessa vez veio Agora sua irmã está falando essa é a casa dela e sua irmã adora o momento em que é a única com a palavra na mão na cara nas pernas ela a passa nem hidratante luminoso e se levanta para ficar maior que todos e dar sua declaração especial sobre aquela noite que é bem típico dela 

Ser o centro das atenções e guiar toda a conversa para o que ela quer falar

Sua irmã possui quase uma década a mais  mas é impossível ter uma conversa séria como uma pessoa normal talvez porque ache que o normal é algo onde sua irmã baseia todo seu senso de identidade isto é quebrar o normal doe a quem doer e todo momento vira um episódio um Episódio solto onde foi a anfitriã Isto faz bem ao seu discurso

E de repente é como se fossem feudos diferentes espécimes de baleias diferentes e tudo que pode fazer é ficar ao alcance da vista porque qualquer conselho qualquer palavra parece que não chega e não é devolvida

E no fim somos isso a insistência dos corpos que ficam e se vão e por enquanto ela fica

Ela é tão autocentrada é isso a dor como uma desculpa o poço de petróleo em seu próprio punho isto não te dá desculpa isto é egoísta Ela é tão passional

E de repente vem flashes de sua infância e é como se sua irmã estivesse como agora sempre em pé muito muito alta com uma cerveja na mão e gestos de mãos muito bem trabalhados e uma retórica impecável como de um velho professor e ativista dizendo como ela tinha que escolher os livros de borracha para ler no banho como era o jeito certo de fazer contas de matemáticas ou organizar os ursos de pelúcia como andar de bicicleta como selar a batata é o jeito ideal de preservar a batata e o sabor e a fome

Temos que preservar a fome este é o tipo de coisa que sua irmã falaria

Como Como Como

Embora ela tenha certeza que para outras pessoas a sua irmã apenas diga frases como

Você não entende a questão é que não existe jeito certo!

E era uma farsa tão cristalina

Tão absolutamente

Diamantica

Que poderia usar até mesmo no dedo aquela cena e todos todos notariam

Então em certo momento sua irmã fala alguma bobagem que ela pescou e ela diz ela se levanta e diz não é uma boa ideia morrer antes da mamãe e papai não é mesmo como quem realmente estabelece um acordo legal ao vivo

Com uma voz relativamente alta e uma altura relativamente maior por causa do tom de sua voz não usual

Sua irmã leva um susto e diz calma ninguém vai morrer

Não recebeu o memorando

Ninguém vai morrer

Embora estejamos aqui bebendo e escutando músicas pop ruim  e tenhamos passado a semana completamente nervosos a ponto de dar graças a deus que os pelos ainda insistem em estar em nossos corpos nervosos como um buffet de obsessões misturadas com curtidas e contas negativas no banco e recusas de currículo de emprego e pés na bunda do passado até o futuro e alugueis alugueis alugueis de tudo não so de casa

De carro

De trepada

Aluguel de piscina meu deus aluguel de rio de garrafinha de água

Ninguém vai morrer minha irmãzinha não seja tola apesar de hoje estarmos aqui em casa reunidos e amanhã poder durar dois dias ou um ano e eu ter que entregar o apartamento por falta de dinheiro ou futuro ou fuga ou perseguição

Estamos todos juntos porque ninguém vai morrer

Sim sim lá fora não há uma viva alma em circulação os táxis os trens os aviões parecem excluídos de uma piada ruim

Os bares fechados os restaurantes fechados os encontros fechados os trabalhos fechados as portas fechadas

Ninguém absolutamente ninguém


Porque lá fora o ditador virou dez e anda nas ruas

Porque o golpe foi consumado nessa tarde

Porque  não há mais algodão para as roupas e água e trigo para o pão e isto era para ser o futuro

Porque uma praga acabou com nossas plantações

Porque o Congresso foi fechado

Porque os robôs tomaram conta da administração do mundo

Porque fomos traídos pelos golfinhos os leões até mesmo os quatis nos traíram

Porque um fungo raro

Espalhou uma praga


Ou porque apenas precisamos de uma folga

Uma folga ela 

Pensa


A irmã dela não sabe quando parar

Parar Parar Parar Parar


Ela está errada claro vai morrer sim vai morrer gente e vai ser aos montes

Ela checa a hora de novo e suspira de novo e pensa em talvez apenas buscar uma cama para dormir