Depois do expediente, mesmo sem muita sobra de dinheiro,
gosto de entrar em uma loja como quem não precisa de nada, mas quer ser
impressionado mesmo sem nenhuma imaginação pronta para ser substituída por
realidade.
Entro em joalherias e
vejo as formas cilíndricas e octogonais dos colares, examino as fendas em ouro
como quem relembra a pele por trás deles, como quem já tivesse o pescoço só
faltasse o presente para dá-lo. Mas no fim os pescoços e as mulheres que
construo são sempre mais belos e belas do que um relato pronto, e me coloco a
pensar nelas indo embora com facilidade e deixando os vendedores inseguros com
a qualidade de seu estoque.
Gosto de andar pela
rua, meu terno, uniforme de trabalho alinhado, feito exatamente para o homem
que me tornei. Quem me enxerga com uma gravata borboleta, os sapatos
engraxados, nunca imagina meu trabalho e sempre me trata como se eu existisse,
com um cumprimento, uma oferta de flores, um convite.
Quem me enxerga
imersos em linhas de giz nunca pensaria por exemplo que ganho a vida a tocar
piano, e todo dia acordo muito cedo, porque a morte nunca descansa, e chego em
meu local de trabalho, ou seja, o hospital. Que trabalho num hospital.
Há alguns anos atrás
fui internado lá, tempo em que eu bebia demais e uma infecção levou parte de
meu fígado. Sem ter dinheiro para pagar, o diretor do hospital me ofereceu
outra saída. Esse lugar é muito triste, me disse ele, talvez se houvesse um
piano. E assim foi que comecei a usar esse terno, esses sapatos, e a tocar no
saguão de recepção do Hospital Fonte de Luz.
Todos que aqui chegam, desde o táxi, desde a esquina, já são
surpreendidos pelos cordas altas, por um Bach e eles não sabem nomear, mas
lembram seus avós ou pais, já são guiados pela minha música e ficam curiosos
por saber quem é o responsável por essa distração. Este não é o lugar onde eu
imaginava estar quando crescesse depois de inúmeros noites de estudo ao lado de
Neuza, uma mulher baixinha que me deu a impressão de que tudo pode ser
portátil, e com muita força nos dedos, que me injetou a capacidade de não errar
e mesmo se errar um ou outro reflexo e combinações de notas, continuar.
Fora Neuza também que me deu lições sobre a mística dos
pianos. Há certos pianos que tem o poder de ensurdecer algumas partes do corpo
das pessoas, de controlá-las por assim dizer, mas apenas os muito bons, ou
muito ruins, conseguem isso. Nunca pensei ser um nem o outro.
Sempre lembro de Neuza uma ou outra vez no meu dia. Seja
porque alguma flecha aguda de choro percorreu três corredores intacta, Neuza
nunca demonstrava falar com as dobras do rosto, seja porque alguém reclamou do
serviço dos atendentes de recepção, Neuza possuía uma severidade que em outro
mundo seria um navio de guerra.
Como meu senhor disse um hospital é um lugar muito triste
mesmo, mas não precisava ser visto assim. É claro que existe a presença das
unhas sujas da morte, infectando os lenços brancos e feridas de acaso, mas
também há os eventos de nascimentos, e fomos criamos para achar que bebês e
crianças são coisas boas, portanto a esperança aqui anda nua. Mas este é um
lugar diferente. Colorido, com lustres grandes, detalhes bem talhados ao redor
das portas janelas, cores vivas como o vermelho sendo usada na maioria das
paredes sem medo do que ela possa despertar. Esquecer aqui ganha de qualquer
descuido.
Quando comecei a
tocar por aqui, uns achavam um absurdo, o barulho, a perturbação dos doentes, dos familiares. Como se meus dedos soletrassem desafinassem
seus instrumentos de percussão, deformasse a imagem dos parentes doentes, os
fizessem sentir culpa por lembra de uma viagem à uma cachoeira, a visão do mundo
por trás de uma cachoeira, achar lindo e se acostumar com os traços da beleza. Mas
depois de um tempo percebi o meu dever ali. Antes de eu chegar havia gritos,
choros, muitas mulheres em desespero por seus parentes mortos, homens calados
pela gravidade de seus peitos,
criancinhas sem volta, uma dor a vista de todos como um forte de uma guerra que
não existiu: inútil.
Depois do piano
desabafar, era como se os mortos deixassem de viverem para seus amigos e
familiares, as pessoas tomavam um tom de serenidade com um grande gole, e
outras, por mais que gritassem e sofressem, era impossível ouvi-las pois meu
piano era muito alto e denso, como uma nuvem de areia. Era esse meu ofício ali
afinal, espantar a dor dos falecidos, algo que nunca imaginei que um
instrumento fosse capaz de fazer. No final do dia, as pessoas chegavam em casa
com grãos de areia entre as camisas e os casacos, entendi que arte é
esfarelar-se e a música é sempre alguém fugido e não necessariamente procurado.
Um dia desses como de habitual fui dar meu passeio depois do
trabalho. Quando saio de lá, de forma desastrada me atravessa uma pena daquelas
pobres pessoas que não terão o consolo da minha música e estarão sozinhas com
suas próprias nevadas de dor, um frio conhecido por mim que já passei por isso em
frases curtas de minha história. Eu estava a ver camisas da qual nunca poderia
comprar, me divertindo com suas estampas tão parecidas e ridículas dos detalhes
mínimos, quando espichei a atenção para uma conversa.
Dois homens
conversando, um deles, o que eu reconheci, contava que a esposa estava
seriamente doente. Embora eu fique a maior parte do tempo de costas para meu
público no saguão, tenho que fazer as horas passarem então me divirto em
deslizar os olhares pelas roupas de invernos dos visitantes do hospital, ouvir
seus relatos tristes que ultrapassam a barreira do som de meu piano.
A mulher dele, muito bonita, me marcou não só pelos traços
indianos mas também por sua mãe ter ido muito jovem, o que muito lembrou minha
própria história pessoal. Senti um pesar na garganta, como dar a luz à um
iceberg, que se converteu em uma aspas de longo choro.
A futura morte senti como se toda minha mobília fosse solta
fora. Precisava saber mais sobre o que estava acontecendo, talvez salvar os
móveis de minha sala íntima. Aquilo tratava-se de uma injustiça. Educação ainda
me resta, não falei com o homem de rosto em falta.
Noutro dia no
hospital, em meu intervalo conquistei um pouco de coragem e bisbilhotei a ficha
médica da mulher enquanto ela saíra do quarto para um exame. O pâncreas
decidira parar de repente, mesmo sem nenhum sinal desse mal na família. Depois
disso, toquei o piano por uma hora além do meu expediente, em uma tentativa ridícula
talvez de reencantar o órgão suicida pela vida.
Foram talvez duas semanas que vi o homem na sala de
recepção. Colocava atenção em suas roupas, eu queria saber se ele estava se
cuidando. Perto da morte da esposa, ele parecia bem melhor. Ficava o dia
inteiro olhando para o grande lustra da sala, abrigando-se no que saía de
minhas partituras, imagino. A mulher faleceu e nesse dia eu consegui estragar
meu uniforme. Não parecia justo, depois de tanta bagunça, sujeira, caos
aplicado, eu retornar todo dia impecável, com as dobras da roupa bem passadas,
e perfume entre as camadas de roupa. Tomei alguns remédios para conter a
garganta de sua fuga, tonto me depositei no chão com agressão, me dei um furo
de tecido na altura dos quadris.
Pelo menos nunca mais veria o homem, e isso me saudava.
Esqueceria desse espetáculo familiar e poderia assim fazer o que o diretor do
hospital, aquele homem saudável apenas em teoria (sua barriga parecia apenas
possível de ser pensada por um chargista, era muito grande) e abastecer o
ambiente com o consolo que a arte promete. Porque a arte é o ato de empregar
veludo nas espadas e morteiros, de suavizar as derrapagens, de soldar a beleza
até mesmo nos terrenos mais abandonados pelos planos. A vontade da música,
a única legislatura real da arte, é a de
nos promover a bancos de carona, colocando a suavidade no controle. O conforto,
o pequeno conforto que eu poderia fornecer a qualquer um, me dava vontade de
abrir filiais de olhos até nas costas para enxergar mais a vida ao acordar.
Depois de recuperado, e com meu rasgo e quadris devidamente
costurados, me entrertia a ver as enfermeiras, sempre firmes em suas
panturrilhas mais do que nos humores, em observar o movimento da porta de
entrada, sempre maior no inverno. Mas logo, minha leveza se desmanchou no ar.
Por esses dias, apareceu aqui foi o
marido da mulher, o marido da morta, que é filha da morta. Como pode, deus do
céu, um sobrenome quase inteiro desaparecer. Descobri, que o coração do homem
estava parando aos poucos. Logo aquele coração que tanto se fez de público para
nossas tardes de Wagner, de Dvorak, agora se silencia.
Fiquei muito triste, nunca tive uma família tão grande, e
esse homem estava perdendo tudo que nunca tive. Lembro de ter me socorrido em
uma sala esquecida na lavanderia do hospital. Lá deixei um mapa hidrográfico de
minha tristeza, chorei, horas ali como prova. Foi então que comecei a me dar
conta de algo terrível. A maioria dos rostos que vinham ao hospital eram sempre
conhecidos, familiares de familiares, sempre os mesmos, eu conhecia quase que
todo meu público. Quando os pacientes saiam dos quartos, me obriguei a ler suas
fichas. Os motivos que os levaram ao leito eram sempre parecidos, os órgãos
começavam a parar de funcionar, como quem desiste, como quem cala do nada. Um
dia eles iam ao hospital, visitar uma
vida ou o acabar de uma, no outro, entravam para nunca mais sair.
Saí no meio de meu expediente. Fui para casa, juntei todas
partes de meu uniforme. Os queimei na lareira, o que não foi uma boa ideia
porque os botões de plástico deram um cheiro terrível para as cortinas. Comecei
a ver as paredes ficarem pretas, os cantos engolirem toda a luz. Olhei para meu
piano como quem reconhece um assassino sem ter nenhuma certeza. Tive vergonha
do que tinha me tornado. Extrema vergonha e um remorso de mil homens com o
entusiasmo de quem recém tinha descoberto a pólvora. Houve uma época que eu
pensei que ser música era uma boa coisa, houve uma época em que colocar para
dormir o corpo, a vontade, o desespero era apenas metáfora. Neuza veio em minha
mente e a odiei com todos hectares de meus anos de paz, a odiei por ter me
treinado tão bem. Eu era um ótimo ´pianista, talvez o melhor. Agora tudo fazia
sentido, o dono do hospital e sua insistência em me fazer trabalhar lá, no
fundo me fez de bobo, me deu o tom escuro não só por fora mas por dentro do
corpo também.
Comecei a tocar o piano sem planos de parar, com a raiva
elucidando as notas, eu queria que o som fizesse tudo parar, eu queria que tudo
calasse, por tudo quero dizer meu corpo, quero dizer minha vida. Mas para minha
infelicidade, um assassino não pode se matar definitivamente com sua própria
arma. Apenas morrer múltiplas vezes, apenas sofrer, e foi isso que fiz.