quarta-feira, 6 de março de 2013

Infância


Ficarás atrás do vidro da sala. Ficarás sempre atrás dos vidros. Com audição incompleta. E a mensagem em parte, uma imaginação. Assim como aquela memória, gestos que contaram a história, principalmente aqueles que fogem do painel de controle, o grito das mãos, os dedos intimidadores, ombros espremidos e levantados. Depois, as provas estarão por ai. Nos rostos sem firmeza, anestesiados pela faca fria de uma decepção, de um não saber que deixa os olhos nos cantos tentando arrancar alguma explicação.

É uma criança agora. Prende os cabelos para evitar que demonstre algum crescimento, mesmo com ossos mais pesados que os do ano anterior, desmente tudo com atílios coloridos cansando as raízes do cabelo.

Insiste em prender-se nessa imagem que lhe deram e nunca reclamou pela facilidade de justificar e surpreender. Tal como a maioria das crianças de sua idade gosta de ficar acordada até tarde, principalmente agora, que reverteu o medo que sentia por ela em poder sobre a própria. E assim passava suas noites lendo atlas de países que sentia-se íntima ao decorar com esforço suas capitais, uma forma estranha de sentir-se no mundo, vendo programas de TV em língua inglesa e registrando as palavras incomodas, e no computador vendo imagens antigas dos parentes, tentando compreender o que deu-lhes a face atual.

Gosta de desenhar rostos de pessoas, em cultivar um olhar esparramado nas feições de uma foto, um artista que lhe agrada sem entender ainda as fiações do desejo, um esportista com o qual se identifica pela soberania sobre a morte, encarando-a de um paredão de pedra em uma escalada por exemplo. Fica a treinar desenhos de narizes, traços de olhos, as linhas que demonstram as bochechas, que distinguem uma felicidade ausente.

Gosta muito de observar as pessoas, por um interesse é claro, puro e obsessivo de apreender com suas linhas, decorar seus encaixes, entender o quem ali, seja os olhos, os ouvidos ou a boca, a faz mais saliente em nossa memória. Às vezes só lembra das testas, às vezes, apenas das sobrancelhas.

Mas apesar de sempre preencher os bueiros do tempo com o exercício de algum roubo de feições, uma tentativa de criar companhias no papel, sempre com aquele olhar ao exterior humano mais frágil, sabe que não será uma desenhista, ou até mesmo uma artista. Pelo contrário, tem plena consciência disso.

Talvez o que grite mais forte seja a vontade de fazer das coisas matéria para seu álbum, de manter a memória sempre alimentada. Essa inclinação para a natureza erosiva dos rostos veio cedo na verdade. Desde pequena demonstrava afeição pelo teatro, treinando suas expressões em frente a um espelho ou no encontro com algum amigo desconhecido de seu pai, algo que ela achava muito engraçado era assustá-los com suas personagens ácidas e pouco calorosas. Talvez por isso passasse boa parte dos dias contendo-se o máximo possível, poucos diálogos e afeições, como se fosse uma grande concentração antes da peça, chagava nas aulas de teatro no colégio com uma bagagem cheia de energia.

Nessa época também, se assustará bastante ao perceber a tamanha facilidade que tinha para formar quadros de sofrimento e tristeza com a face, e qualquer erro de comunicação com suas musculatura poderia demonstrar tal melancolia, o que não era muito agradável.

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