terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chuva

Levou algumas gotas daquela chuva para casa. Era o dia, dia que não alerta cabeça pra lembrança, dia que procura a cama pela esperança de melhoras. Já estava calvo partido sem brilho e com barriga rendida as desvontades, sem mesmo estar velho via num espelho que não refletia o presente.Era justo que o tempo apertasse assim, pensava F., enquanto mirava a pele do papel sem curvas, uma promessa de corpo que excita, pois era dos fios de fôlegos viajantes que compunha algumas respiradas breves.Finalmente mirou a caneta defronte ao papel, mas o que era a ameaça de uma idéia para ser digerida pelos seus futuros devotados, revelou-se na verdade, um lembrete de pensamento: “Gil ficou de passar aqui hoje “para dar uma mexida nas crônicas, que, no bar de Manoel ele propagandeou, aos balbuciares alcoólicos, estarem prontas formidáveis e “esperneadas” (expressão , uma das poucas, que evitou Gil de terminar seu chope num gole único, dado a certa curiosidade que os moldes de sua testa, explicitaram muito bem.

Não lembrava quem tinha pago a conta naquela noite, nem se Mari teria tomado muito copos e ficado de poucas roupas. E, claro, naquela hora não o passaria na cabeça que há dias as palavras o viam como um abismo sem volta. Passou a mão na cabeça, acariciando-a gentilmente, na tentativa rasa de convencê-la a trabalhar mais mas não.Não havia textos .Os que nasceram doentes já definharam em algum lixo sorteado de embalagens de remédios.Não haviam crônicas, nenhuma história má bem contada, nenhuma genialidade em papelada, nenhuma explicação da inutilidade de seus dias justificada por seus encontros com o papel.F. soltou os olhos a deslizar entre os cantos das paredes, até que um relógio os contassem que havia algumas horas até Gil chegar afoito e encharcá-los com aquelas risadas sem ar.Se ela estivesse lá, isso jamais aconteceria, se ela estivesse lá as palavras alimentar-se-iam da tanta vida que lhe escapava.F. lembrava de Ana como o presente lembra de ontem, com insistência.Era além de tudo, um absoluto movimento do destino que o fez pensar em mover-se ele próprio ao infinito, e agora, persuadiam restos, detalhes que não esquentam, um vazio que de tanto preencher, escapa-lhe pelos olhos murchos enrugados de alma, feinho de ver.Juntou um bocado de papel que pesou bem sobre a mesa.Escrever sobre o que se conhece, citou-se Guimarães.Escrever sobre o que ama, incitou-se ele próprio.

“Não eram os meus pés que andavam pela cama. Antes de tudo, quero falar daquilo que se guarda e que se mantém pela covardia vencedora: o segredo. Meus olhos viciados meus braços navegadores nas tormentas do ar meu dia de bronze meu sonho vivo letras rimadas a espreita de uma noite que escondia-me, do simples declínio de cair por ela, era o meu segredo. Um desses que se contam sozinho sem palavra única falada, que se entregam num beijo, que no meu caso demorou muito tempo. Mais exatamente no tempo de 1999 na chuva que não caía mas fazia barulho dentro dos botecos de Montivideo, dentro das paredes encalhadas de perda e cupim, no Buteco Jerônimo no centro de alguma coisa que não me equilibrava.Fomos os que cantaram Corcovado, acompanhados do argentino estranho as cordas do violão que tocava em frente ao bar.Do corcovado, as outras músicas que ouvi, foram as batidas de seu copo de uísque no balcão doente de tempo, suas risadas abafadas pelo fumar dos cigarros, sua dificuldade de olhar-me nos olhos a procura de uma porta, que por mim poderia fechar-se para sempre e deixar apenas nos dois lá.Na arquitetura, lá em Porto Alegre, nunca trocamos nada embora algumas aulas assistidas na mesma sala.Acordei com ela na cama, como acordaria por vezes seguidas, nas quais consegui dormir direito.Digo que lá, foi-se toda a minha vergonha e covardia enquanto seus seios cabiam-me e alimentavam-se em minhas mãos, enquanto entrava no seu corpo para convencê-lo a me querer longe, com um tempo parado , decidido a deixar vestígios convencedores de quero mais.

Trabalhava feito um estivador em Chicago, antes da Lei Seca.Naquela época meus pais, adoradores da boa vida que vai pra onde o dinheiro está, me mandavam notas de reais que iam para o pagamento de meu estudo na Faculdade de arquitetura.Essa é a versão deles. Quando conheci Gil, ele era um Editor desses especializados em achar gente que escreve para escrever o que ele sempre tentou, mas não conseguiu pela razão lisa de, ele não ser um escritor. Gil achou que eu era um escritor.Mandou eu parar com a poesia “berrante sem ouvidos, de melosa suja os ouvidos”.Eu escrevia contos sobre as fruteiras da cidade baixa que vendiam cachaça para abrigados de dores ditadoras, sobre a fábrica de desiludidos que as rua de Porto Alegre fabricavam, sobre os estudos que não dão curso.De vez em quando vazia uma reportagem essa outra lá, uma crítica sem açúcar ou molhada de mais.Gil falava não pára não pára, enquanto eu via na vodka transparente dele, uma amargura infinita da falta de solidez de sua felicidade.Me contava, como contava a todos que carregam ouvidos vivos, que a mesma mulher que o amou matou um homem, homem esse que ele desconhece, pois Desde então, Gil mudou radicalmente.Eu o escutava preso nessa sina de contadores de história de fazer dor dos outros abrir um choro num olho alheio.Mexia meu rosto como quem sabe como é mobiliar um futuro com apartamento penhorado, não dizia nada, apenas fazia sinal para o garçon trazer mais uma dose de álcool com qualquer coisa.

Foi quando me senti homem desses feito, quando cheguei em casa e Ana, a minha Ana, a Ana do meu segredo, me segregava os sentimentos, fundindo-se todos eles no corpo dela mesmo.Ela estudava para o mestrado sabendo o que quer quando quer a quem matar para nutrir-se bem.Fazia-me tudo, via em mim algo para o qual eu sempre fui cego, sentido.Eu era o servo de suas confidências, o acamando de seus longos morenos enquanto ela lia sem parar algum americano era do Jazz e eu dizia, frase não pode ter perna curta, e ela falava a tua literatura não anda, sim desanda, nessas doses de melancolias feitas extraídas de ingredientes schouperianos. Mas o que ela sabia. Construía casas, e bem, enquanto eu gostava mesmo é de ficar na rua.De preferência, na chuva.

Vivíamos como Astaire e Ginger, na maneira de ver as dificuldades.Dançávamos nelas de graça, com toda a graça que algumas caixas de cervejas servidas com nossos corpos podem sugerir.Ter as minhas fraquezas encaixotadas e contrabandeadas para algum continente frio, me fazia ter ver em mim próprio, terra habitável.Eu vi os dias correr em mim, deixar pegadas grossas na minha memória no meu além, eu vi eu mesmo tornar-me uma indústria de desejos pela falta. Falta de ter do que reclamar para enfeitar um café diurno, enciclopédias para basear as angústias dos seres, que me escolhia como manifestante em minutos semanais. Comecei a renegar tudo que pra mim era estrangeiro a indecisão a revolução dos de barriga cheia o amor dos que não conhecem o contrário. Agora diria que eu me media com a escala dos arrogantes, e nessa eu era o maior erudito.

Ana pintava um quadro. Ana não pintava quadro nem escrevia poesias não arriscava-se nas artes que a sua sedução não fosse certeira.Eu tinha passado o dia todo no quarto, com um computador do inicio do século sem nenhuma comunicação que não fosse as palavras com o teclado.Sai com um conto de duas páginas que viraram uma.Aquela porta que me separava dela, abri em raiva de guerra, contra mim mesmo versus a vontade que me prendera naquele quarto pra nada.Ela largou o pincel sobre o assoalho pincel com cor vermelha transferida para a pedra granito sem preocupação de limpeza e estética.Me olhou como quem diz, esse rosto ta aqui ainda só por falta de pernas pra levá-lo.Era um banquete do meu medo ganhando vida, o que ela me oferecia através daqueles lábios caídos, por minha causa, eu sabia.Parados giramos giramos giramos tanto e quem caiu primeiro fui eu.Larguei as folhas no chão e agarrei por trás das costas ate que surgisse na sua pele curva, a cor do sangue meu que por um tanto não escapou por todas oportunidades de minha anatomia.Ela continuou fortaleza de sua mensagem, agora me negava até mesmo o endereço do olhar.Era uma pedra que eu não podia esculpir nem com o amor mais natural da minha humanidade.Um desenho autônomo e pronto do qual, eu não tinha mérito por nada, absolutamente nada, e então eu compreendi, soltei-a com braços em pranto com a seriedade como barricada para meu querer.Afastei-me devagar para me acostumar com o fato que, um passo a frente em direção a ela, seria, uma batalha fracassada.Chamei-a de puta.Como se fosse a desordem que derretia as estruturas da modernidade, como se fosse o silêncio conservador que uns tentavam estancar os gritos entrelinhados de ressaca através da poesia.Chame-ia de puta.Mandei embora a sua vida os nossos laços cortei com um grito único que nunca tornar-se-iam palavra digna de fato.E agora, ela, a pedra, pedra de gelo, derreteu-se.De uma primeira lágrima veio seguidores em cascata, um choro , que vi desaparecer em degradê até a casa tremer em todas as extremidades, ressoando o que era, antes de uma porta separando-me dela, uma felicidade a agonizar na forca.

Procurava em desistência a ganhar, um lugar para tomar uma água gelada antes quem me tomasse por completo, fosse, o verão na cidade.Tinha terminado meu primeiro livro, e seu final resolvi deixar por aberto.Na rua crianças desfilavam quase como vieram ao mundo, enquanto seus pais não viam a hora de se mudar desse, embaixo da radiação sem desconto do sol que queria brilhar mais que o dia.Corpos escorriam e eu imaginava estar eles desmanchando.Tal como o dela desmanchava-se de meus dias.Matéria de gaveta: descaso ao com as obras de arte da capital.Acontece que não via arte era em lugar nenhum, tudo que assemelhava-se a isso para os outros, para mim era, um simples trote louco para te pegar pelas bola.A beleza em si, é um trote.Tal como Ana, um risada que ninguém ri porque está ocupado de mais sofrendo.E se nós tivéssemos conversado?Não a dei a chance da palavra, apenas, confirmei o fato de que, não a mereço.Que preciso cavar buracos para poder dançar.Que precisava dela para vê-la ir embora.Isso me invernava em pleno calor, saber que, sim a amo, mas amo mais ainda é o meu eu excessivo, orgulho incabível em razão.Não consegui descobrir de que cano de esgoto ou doença da cabeça viera aquele meu surto.Um poder talvez.Poder sobre a desgraça, a minha.

Quando comprei enfim a água, minha sede mostrou-se não estar lá. O que estava lá além dos serás não sabia. Não confiava mais nas decisões daquela que autoproclama-se consciência ,mas que não carrega bandeira, que nada.Eu queria que chovesse.Embaralhassem os pacotes de suor com a água que como eu, de pesada, de cheia, de concentrada, caí.Queria sentir no meu torso algo que não fosse arrependimento, que não tivesse controle, que imposse como dono.Queria que aquele céu chorasse pelo que eu não chorei.

Os livros que li, não foram muitos a me ensinar, como não ser um idiota.Não li muitos livros cheguei a conclusão agora a tarde, enquanto pensava, em algum lugar dos Grandes Lagos deve estar chovendo bastante agora.Conhecendo Ana, ela devia agora estar numa praia, após ter reatado com seu antigo namorado de infância apaixonado por ela em todos os tempos, após ter decido caminhar mais, ignorar escritores que a flertem no bar e casar com esse babaca para não derrapar em gente como eu.Vai ver quando me apaixonei por Anna, o que eu queria era um romance, esses de papel mesmo.Palavras em varal, sempre fáceis de vestir qualquer história.Um amor pra se conhecer, não ter.Olhei pela janela.Enfim a chuva, convidava-me para uma caminhada.Foi no clarão da noite, percebi.Nunca a amei.De Anna, eu tirava minhas tempestades para matar a sede.

Quando Gil chegou, F. o aguardava na sala. Como de habitual ele falava longe de usar vígulas.Contou sobre um sonho estranho, um amor novo e uma briga de bar.F. não entendeu direito e tratou ambos os fatos como pesadelo.Acendeu um cigarro feito por ele enquanto colocava os papeis recém escritos dentro de um envelope.Sua barba tomara pontos estratégicos de seu rosto e sua voz contida mais a mais, não passaram despercebidas. ”Está sentindo-se bem?”, perguntou o editor. Um espirro foi a resposta.”Não subestime a chuva de verão. Você devia aprender a usar o guarda-chuva, Filipo”.

Nenhum comentário: