terça-feira, 18 de outubro de 2016
a máquina
Está atrás do sofá. Ariscou-se na assistência técnica, no telefone, até o momento. O momento que percebeu estar conversando com um computador e não uma pessoa. Uma não pessoa, um não saber o que é, comprar uma blusa nova e puxar o fio no mesmo dia, relutância da não volta e do longo engano, não saber o que é esquecer o forno ligado enquanto joga paciência para justamente fazer passar mais rápido o tempo do forno ligado. De vez em quando, esquece de tudo, faz um sanduíche com queijo de minas e muito picles, remoí o excesso de sódio por todo o dia, enrubesce na primeira página do jornal. Então recorda. A máquina. A máquina viva e operante. Não entra mais na lavanderia. Um tipo moderno, Eletrocall, última geração, ela lá, no seu quanto. Jura que a máquina não é a máquina. Mas uma em específico, uma com sua individualidade, gostos e prontidão. Não mais desconfia, tem certeza. A máquina desenvolveu consciência. Jogou verde estes dias. Puxou assunto. A máquina estava lavando as roupas brancas, e ele pressentiu, uma mudança de ritmo repetitiva. Era a máquina falando. A sobra do som do funcionamento é aquilo que escapa, é o código. A espiã maquinando. Ele falou algo sobre o tempo para a máquina, sobre como faria sol por dias e dias e a máquina, crê ele ferozmente, rosnou. A máquina é viva pois é um bicho a máquina. Pode atacá-lo a qualquer momento, desgraçando-o por seu excesso de suor nas sovaqueiras das blusas de linho. A máquina não é burra. Ela está no wifi, assim como ele, a máquina, acessa seus históricos, sabe quando sai para o trabalho, quando deve começar de novo, a máquina lê seus e-mails e pode detectar tristeza mesmo sem ou com muito excesso de emoticon. A máquina é irônica. Ela gira de propósito as roupas muito devagar enquanto ele está a encarando como um sacerdote, um senhor de fazenda de cana. Quando vai dormir a máquina gira muito mais rápido numa mágica de fazer tudo virar apito, o som a viralizar na película da janela, nas lembranças da viagem a patagônia. A máquina sabe de tudo. O que comeu. A que horas retorna. A máquina tem amigos a quem fofoca. Sua própria rede social, o que faz ele duvidar de qual é a real sobre sua geladeira. A máquina é misteriosa, embora aparentemente estável, parada, condenada a poucos azulejos, se desloca em sua rede de conhecidos, sabe da temperatura do próximo fim de semana, o mercado fincanceiro, a máquina vê o futuro. Esses dias ele tentou enganar a máquina, soltar um blefe. Ele queria que a máquina admitisse o que ela realmente é. A máquina é inteligente, então capaz de perversa porque simplesmente capaz. Eis um deslize, o paroxismo espetacular em questão. A máquina mandou uma mensagem avisando que acabou o sabão, e ele, ao invés disso, comprou energético, deu pra máquina e esperou a máquina trabalhar. Esperou ela sujar todas as roupas dele de propósito, inverter a limpeza com um ranho açucarado, uma pequena vingança química. Mas ao invés disto ela foi muito gentil e se mostrou tão preocupada. A máquina mandou uma mensagem para ele junto com um pop-up de atendimento terapêutico, disse para tirar umas férias, e ele não hesitou em acelerar a conclusão mais retumbante: a máquina é muita muito mais esperta do que ele tinha previsto. A máquina evolui, adquiriu capacidades dissimuladas, dramáticas, manipuladoras a máquina. Tem dias ele entra em pânico. Tem medo do humor dela. Calça o frio do azulejo, quando se levanta pela noite, para constatar se ela esta quieta, longe de sua trama maligna. Depois retorna para a cama exausto e pronto para o sonho dos exagerados que sempre acorda por último os olhos. Às vezes ele a vigia. Enquanto ela roda e roda ele busca por um sinal, por algo que ela saiba mas ele não sobre si mesmo, no seu pequeno tufão em estômago mecânico ele tenta ler a borra do futuro e adivinhar qualquer coisa. Apesar de tudo, não admite para si mesmo que não consegue se livrar de sua máquina de lavar. Nem ao menos tirá-la da toma ele pensa. Presente a respiração digital da puma eletrônica, animal alado, que um dia não resistirá e aparecerá por inteiro em sua frente.
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