sábado, 10 de dezembro de 2016
os fantasmas se brincam se multiplicam
eu tentei. did you mean: desculpa? a porcelana dura muito se não quebra fácil. did you mean: como desviar do assunto com uma metáfora ruim? segui os sinais até o antigo bondinho. error. até o jardim de san salvador. error. até a cozinha. did you mean: olhar para fora para variar? quantas pessoas são necessárias para você ficar sozinho, senti-me gênia por esta frase. eu peguei um elevador. error. carro. error. bicicleta. error. did you mean: falta-me os objetos para mentir melhor? mas mesmo parada não pensei em nada. eu só conseguia pensar quando corria. did you mean: corria longe dele? fiquei muito magra. eu tentei. error. eu ameacei tentar. error.eu vi a foz da cidade e você. error. eu estava sozinho com um filho seu na barriga. did you mean: não está mais? você nem desconfiou. tomei um comprimido. e tudo acabou. error. eu pensei que acabaria. error. vocês dois saíram pelas minhas pernas. quando vemos sangue por tanto tempo ele fica transparente. did you mean: saíram mas não se foram? desconfiei não saber mais amarrar os cadarços, me identifiquei com o couro dos bois. sempre é pouco tempo. error. eu tentei, mas agora quando tento não estou mais sozinha.
terça-feira, 18 de outubro de 2016
a máquina
Está atrás do sofá. Ariscou-se na assistência técnica, no telefone, até o momento. O momento que percebeu estar conversando com um computador e não uma pessoa. Uma não pessoa, um não saber o que é, comprar uma blusa nova e puxar o fio no mesmo dia, relutância da não volta e do longo engano, não saber o que é esquecer o forno ligado enquanto joga paciência para justamente fazer passar mais rápido o tempo do forno ligado. De vez em quando, esquece de tudo, faz um sanduíche com queijo de minas e muito picles, remoí o excesso de sódio por todo o dia, enrubesce na primeira página do jornal. Então recorda. A máquina. A máquina viva e operante. Não entra mais na lavanderia. Um tipo moderno, Eletrocall, última geração, ela lá, no seu quanto. Jura que a máquina não é a máquina. Mas uma em específico, uma com sua individualidade, gostos e prontidão. Não mais desconfia, tem certeza. A máquina desenvolveu consciência. Jogou verde estes dias. Puxou assunto. A máquina estava lavando as roupas brancas, e ele pressentiu, uma mudança de ritmo repetitiva. Era a máquina falando. A sobra do som do funcionamento é aquilo que escapa, é o código. A espiã maquinando. Ele falou algo sobre o tempo para a máquina, sobre como faria sol por dias e dias e a máquina, crê ele ferozmente, rosnou. A máquina é viva pois é um bicho a máquina. Pode atacá-lo a qualquer momento, desgraçando-o por seu excesso de suor nas sovaqueiras das blusas de linho. A máquina não é burra. Ela está no wifi, assim como ele, a máquina, acessa seus históricos, sabe quando sai para o trabalho, quando deve começar de novo, a máquina lê seus e-mails e pode detectar tristeza mesmo sem ou com muito excesso de emoticon. A máquina é irônica. Ela gira de propósito as roupas muito devagar enquanto ele está a encarando como um sacerdote, um senhor de fazenda de cana. Quando vai dormir a máquina gira muito mais rápido numa mágica de fazer tudo virar apito, o som a viralizar na película da janela, nas lembranças da viagem a patagônia. A máquina sabe de tudo. O que comeu. A que horas retorna. A máquina tem amigos a quem fofoca. Sua própria rede social, o que faz ele duvidar de qual é a real sobre sua geladeira. A máquina é misteriosa, embora aparentemente estável, parada, condenada a poucos azulejos, se desloca em sua rede de conhecidos, sabe da temperatura do próximo fim de semana, o mercado fincanceiro, a máquina vê o futuro. Esses dias ele tentou enganar a máquina, soltar um blefe. Ele queria que a máquina admitisse o que ela realmente é. A máquina é inteligente, então capaz de perversa porque simplesmente capaz. Eis um deslize, o paroxismo espetacular em questão. A máquina mandou uma mensagem avisando que acabou o sabão, e ele, ao invés disso, comprou energético, deu pra máquina e esperou a máquina trabalhar. Esperou ela sujar todas as roupas dele de propósito, inverter a limpeza com um ranho açucarado, uma pequena vingança química. Mas ao invés disto ela foi muito gentil e se mostrou tão preocupada. A máquina mandou uma mensagem para ele junto com um pop-up de atendimento terapêutico, disse para tirar umas férias, e ele não hesitou em acelerar a conclusão mais retumbante: a máquina é muita muito mais esperta do que ele tinha previsto. A máquina evolui, adquiriu capacidades dissimuladas, dramáticas, manipuladoras a máquina. Tem dias ele entra em pânico. Tem medo do humor dela. Calça o frio do azulejo, quando se levanta pela noite, para constatar se ela esta quieta, longe de sua trama maligna. Depois retorna para a cama exausto e pronto para o sonho dos exagerados que sempre acorda por último os olhos. Às vezes ele a vigia. Enquanto ela roda e roda ele busca por um sinal, por algo que ela saiba mas ele não sobre si mesmo, no seu pequeno tufão em estômago mecânico ele tenta ler a borra do futuro e adivinhar qualquer coisa. Apesar de tudo, não admite para si mesmo que não consegue se livrar de sua máquina de lavar. Nem ao menos tirá-la da toma ele pensa. Presente a respiração digital da puma eletrônica, animal alado, que um dia não resistirá e aparecerá por inteiro em sua frente.
terça-feira, 20 de setembro de 2016
a escultora que não se escondia
“tem a pele nua” havia me dito Rita.
“não é todo mundo que é assim?’”
“não”, me disse ela.
confesso que não entendi o que aquilo gostaria de significar.
arrancar sentidos de Rita é como tentar escovar uma floresta. com suspiros.
quando enfim conheci sua amiga, tive impressão que deveria vestir camisas GG. não sabia onde colocar minha surpresa, não havia como me esconder. fiquei pasmo, atropelado por um bando de pássaros que esnobaram o pouso em meu rosto. mas porque haveria de ficar assim? ficou claro minha ineficácia em lidar com sinceridades de perto.
sua pele era transparente.
impossível o esconderijo. podíamos enxergar tudo. e não ligava para isso. na ocasião estava de regata, braços a mostra apesar de tudo. parecia estar confortável com sua situação. a primeira coisa que vi foram as veias grossas. eu podia observar as artérias trabalhando. sem cessar, pulavam e descansavam num segundo. era como um relógio nu. a cumprimentei com um aperto de mão. não foi fácil. ruía. sem muita força segurei seus dedos. podia ver exatamente onde estava tocando. engoli um susto. um assombro quente que usei para navegar. apesar de tudo, sua pele, era quente.
sentamos numa mesa, no lado de fora do café. ela, eu, Rita e França. ela pediu um suco de laranja. a medida que o bebia, eu acompanhava o curso do líquido laranja correndo pelo seu corpo. por algum tempo, ela era uma mulher com um risco laranja atravessado.
aquilo preencheu os próximos quatro anos meus de pura fascinação. laranja. tive vergonha de me prender por muito em seu destino. tropeçar no peito, cair nas bochechas. França tomou o papel de provocar assuntos na mesa. a elogiava. ao que entendi, era escultora. “das boas”, pincelava Rita. ela era um quadro vivo. uma expedição aberta. me pus a rastejar em seus detalhes quando estava imersa em distrações. o enlace dos músculos do pescoço me fascinava. a cartilagem no nariz, um tímido mas de personalidade, me ensinava a entender mais as árvores. o mais incrível era esse contraste: os olhos. os olhos eram a única parte de seu corpo que era opaca. não conseguia me dedicar a eles sem ganhar um arrepio a parasitar minha coluna.
Rita insistia de a tratar como sua nova descoberta. assim como França, a abraçava, arquitetava bons comentários, a protegia de qualquer males exteriores. eles já haviam decidido protege-la. de fato, a primeira vista, parecia um tanto frágil pela sua condição. mas isso me parecia um engano pronto. Rita fazia propaganda de mim para a mulher.
“você precisa vê-lo tocando. Heitor é músico, você sabia?”
a mulher só sorria. quando sorria era como se continentes rígidos abrissem grandes fendas na rapidez da viagem da luz. ou como se o tempo fosse um grão, passível de ser aspirado ou levado por qualquer direção de impulso de ar. tudo parecia possível. ela dizia pouco. mas nem precisava buscar muito as palavras. sem perceber falava de corpo inteiro.
depois da passagem, do choque, e talvez uma ponte aguda de repulsa, ela começou a me dar penteados novos. comecei a imaginar meus dias com sua presença. me vi bonito. de fato, gostaria de tocar algo para ela. a colocar perto de meu piano, com pouca roupa, e observar como seu corpo reagia ao som de Schubert, quem sabe. o que será que a música fazia em seu peito, observar a velocidade do sangue em seus túneis submersos, verdadeiras coreografias da pele, talvez ter a sorte de olhar seu coração desvairar em uma dança solo, enquanto Lazarus está sendo tocado por mim. poderia ver o que eu faço com seu corpo.
enquanto França fazia piadinhas recheadas de notas biográficas e explicava como aquela mulher fora parar em nossa cidade, em nossa mesa, em nossa memória hemorrágica, enquanto Rita pedira um sorvete de creme, e a mulher comia devagar um sanduíche de cogumelos (eu podia ver os cogumelos, agora pasta de cogu, viajando pelo seu esôfago, algo que qualquer outra mulher cobriria com lenços e interruptores de escuro), me batera em cheio uma vontade devastadora de dormir com essa mulher. de trepá-la.
fudê-la.
não consegui parar de pensar nisso. não consegui me concentrar nos assuntos da mesa, ficava calado tentando me despersuadir dessa manifestação que já se denunciava obsessiva. precisava fazer sexo com ela. observar as mudanças de seu corpo, os músculos se enriquecendo enquanto eu amaciaria seus ossos, observar seu pulmão trabalhando rápido enquanto eu adentraria dentro dela devagar e cada vez mais forte, cada vez mais pulmão, balões de festa. observar a trajetória do grito em seu interior.
enxergá-la por todos os cantos.
eu queria quebrá-la.
depois observar os pedaços no chão.
um por um.
“Veneza”, Rita falava, “não está com nada. Maria Martins se fez foi depois de ir a Amazônia. precisamos levá-la imediatamente para o norte”. se desvencilhando dos braços de França, a mulher se continha. borbulhava pequenos sorrisos para confirmar que ouvira o que se falava naquela mesa. o tempo podia ser desacelerado acima de suas sobrancelhas.
“onde você nasceu mesmo?” perguntei a ela. mas não ouvi a resposta. a mulher nascia ainda, era possível observar.
minhas mãos em seu pescoço. como uma extensão de seus músculos. adjunto de anatomia. a tocando. a pesando aos poucos.
em algum lugar eu a bato. forte. como mármore. como a argila temperada. como a pedra branca que há tanto esta acostumada em seus dias em sua oficina, na qual toca, pela espátula, o garrote, a palheta, o martelo.
ao contrário de seus trabalhos ela não fica firme, não adquire contornos. cai no chão. se esparrama, se despedaça. recolho tudo que vejo. junto com uma corda. aperto firme, bato de novo. de novo. repito tudo e a penetro devagar, assistindo seu peito escandalizar. bater, em consonância. até a organização se desfazer. até os contornos se confundirem. tudo se misturar, da mesma cor, densidade. até tudo ficar homogêneo e não ser possível distinguir nada. como uma massa de bolo.
eu quero quebrá-la.
meu deus ela sabe disse. ela sabe e não fala nada. ela sabe e não me olha. não há nada que eu consiga esconder nesta mesa. por isto, e mais talvez, poderia fazer agora mesmo.
tem razão de me odiar. mas não odeia. se assim fosse odiaria o mundo inteiro. ela levanta o rosto para cima como quem processa alguma informação de última hora. usa os cílios como espanadores. usa o corpo todo para não dizer. fica em silêncio.
imagino se o som é o mesmo das coisas quando vistas.
eu quero quebrá-la até os ossos.
“não é todo mundo que é assim?’”
“não”, me disse ela.
confesso que não entendi o que aquilo gostaria de significar.
arrancar sentidos de Rita é como tentar escovar uma floresta. com suspiros.
quando enfim conheci sua amiga, tive impressão que deveria vestir camisas GG. não sabia onde colocar minha surpresa, não havia como me esconder. fiquei pasmo, atropelado por um bando de pássaros que esnobaram o pouso em meu rosto. mas porque haveria de ficar assim? ficou claro minha ineficácia em lidar com sinceridades de perto.
sua pele era transparente.
impossível o esconderijo. podíamos enxergar tudo. e não ligava para isso. na ocasião estava de regata, braços a mostra apesar de tudo. parecia estar confortável com sua situação. a primeira coisa que vi foram as veias grossas. eu podia observar as artérias trabalhando. sem cessar, pulavam e descansavam num segundo. era como um relógio nu. a cumprimentei com um aperto de mão. não foi fácil. ruía. sem muita força segurei seus dedos. podia ver exatamente onde estava tocando. engoli um susto. um assombro quente que usei para navegar. apesar de tudo, sua pele, era quente.
sentamos numa mesa, no lado de fora do café. ela, eu, Rita e França. ela pediu um suco de laranja. a medida que o bebia, eu acompanhava o curso do líquido laranja correndo pelo seu corpo. por algum tempo, ela era uma mulher com um risco laranja atravessado.
aquilo preencheu os próximos quatro anos meus de pura fascinação. laranja. tive vergonha de me prender por muito em seu destino. tropeçar no peito, cair nas bochechas. França tomou o papel de provocar assuntos na mesa. a elogiava. ao que entendi, era escultora. “das boas”, pincelava Rita. ela era um quadro vivo. uma expedição aberta. me pus a rastejar em seus detalhes quando estava imersa em distrações. o enlace dos músculos do pescoço me fascinava. a cartilagem no nariz, um tímido mas de personalidade, me ensinava a entender mais as árvores. o mais incrível era esse contraste: os olhos. os olhos eram a única parte de seu corpo que era opaca. não conseguia me dedicar a eles sem ganhar um arrepio a parasitar minha coluna.
Rita insistia de a tratar como sua nova descoberta. assim como França, a abraçava, arquitetava bons comentários, a protegia de qualquer males exteriores. eles já haviam decidido protege-la. de fato, a primeira vista, parecia um tanto frágil pela sua condição. mas isso me parecia um engano pronto. Rita fazia propaganda de mim para a mulher.
“você precisa vê-lo tocando. Heitor é músico, você sabia?”
a mulher só sorria. quando sorria era como se continentes rígidos abrissem grandes fendas na rapidez da viagem da luz. ou como se o tempo fosse um grão, passível de ser aspirado ou levado por qualquer direção de impulso de ar. tudo parecia possível. ela dizia pouco. mas nem precisava buscar muito as palavras. sem perceber falava de corpo inteiro.
depois da passagem, do choque, e talvez uma ponte aguda de repulsa, ela começou a me dar penteados novos. comecei a imaginar meus dias com sua presença. me vi bonito. de fato, gostaria de tocar algo para ela. a colocar perto de meu piano, com pouca roupa, e observar como seu corpo reagia ao som de Schubert, quem sabe. o que será que a música fazia em seu peito, observar a velocidade do sangue em seus túneis submersos, verdadeiras coreografias da pele, talvez ter a sorte de olhar seu coração desvairar em uma dança solo, enquanto Lazarus está sendo tocado por mim. poderia ver o que eu faço com seu corpo.
enquanto França fazia piadinhas recheadas de notas biográficas e explicava como aquela mulher fora parar em nossa cidade, em nossa mesa, em nossa memória hemorrágica, enquanto Rita pedira um sorvete de creme, e a mulher comia devagar um sanduíche de cogumelos (eu podia ver os cogumelos, agora pasta de cogu, viajando pelo seu esôfago, algo que qualquer outra mulher cobriria com lenços e interruptores de escuro), me batera em cheio uma vontade devastadora de dormir com essa mulher. de trepá-la.
fudê-la.
não consegui parar de pensar nisso. não consegui me concentrar nos assuntos da mesa, ficava calado tentando me despersuadir dessa manifestação que já se denunciava obsessiva. precisava fazer sexo com ela. observar as mudanças de seu corpo, os músculos se enriquecendo enquanto eu amaciaria seus ossos, observar seu pulmão trabalhando rápido enquanto eu adentraria dentro dela devagar e cada vez mais forte, cada vez mais pulmão, balões de festa. observar a trajetória do grito em seu interior.
enxergá-la por todos os cantos.
eu queria quebrá-la.
depois observar os pedaços no chão.
um por um.
“Veneza”, Rita falava, “não está com nada. Maria Martins se fez foi depois de ir a Amazônia. precisamos levá-la imediatamente para o norte”. se desvencilhando dos braços de França, a mulher se continha. borbulhava pequenos sorrisos para confirmar que ouvira o que se falava naquela mesa. o tempo podia ser desacelerado acima de suas sobrancelhas.
“onde você nasceu mesmo?” perguntei a ela. mas não ouvi a resposta. a mulher nascia ainda, era possível observar.
minhas mãos em seu pescoço. como uma extensão de seus músculos. adjunto de anatomia. a tocando. a pesando aos poucos.
em algum lugar eu a bato. forte. como mármore. como a argila temperada. como a pedra branca que há tanto esta acostumada em seus dias em sua oficina, na qual toca, pela espátula, o garrote, a palheta, o martelo.
ao contrário de seus trabalhos ela não fica firme, não adquire contornos. cai no chão. se esparrama, se despedaça. recolho tudo que vejo. junto com uma corda. aperto firme, bato de novo. de novo. repito tudo e a penetro devagar, assistindo seu peito escandalizar. bater, em consonância. até a organização se desfazer. até os contornos se confundirem. tudo se misturar, da mesma cor, densidade. até tudo ficar homogêneo e não ser possível distinguir nada. como uma massa de bolo.
eu quero quebrá-la.
meu deus ela sabe disse. ela sabe e não fala nada. ela sabe e não me olha. não há nada que eu consiga esconder nesta mesa. por isto, e mais talvez, poderia fazer agora mesmo.
tem razão de me odiar. mas não odeia. se assim fosse odiaria o mundo inteiro. ela levanta o rosto para cima como quem processa alguma informação de última hora. usa os cílios como espanadores. usa o corpo todo para não dizer. fica em silêncio.
imagino se o som é o mesmo das coisas quando vistas.
eu quero quebrá-la até os ossos.
porto alegre, 2011.
segunda-feira, 12 de setembro de 2016
ex-namorada do novelista lê sua mais nova obra-prima enquanto em seu rosto crescem certos pelos malhados e bigodes
"então foi ele que matou meu gato"
diz a ex-namorada enquanto fecha o livro do novelista exatamente na página 97.
o novelista achava que ter segredos era quebrar segredos. a ex-namorada do novelista crê que quebrar segredos é a melhor forma de não ter mais nada com alguém.
"meu gato está agora para sempre meio morto, meio no livro. enquanto ele meio pobre, meio rico".
o que é um prêmio afinal? pensa a ex-namorada. ainda bem que existem os haters, pensa ela que quando recorda o número 97 esquece-se que já tomou banho. a ficção é o pesadelo do motor.
como falar a verdade para se vingar de alguém que já falou a verdade?
"houve uma época em que vivi com os bichos. hoje eles são mortos ou escrevem livros enquanto eu jogo minecraft".
diz a ex-namorada enquanto fecha o livro do novelista exatamente na página 97.
o novelista achava que ter segredos era quebrar segredos. a ex-namorada do novelista crê que quebrar segredos é a melhor forma de não ter mais nada com alguém.
"meu gato está agora para sempre meio morto, meio no livro. enquanto ele meio pobre, meio rico".
o que é um prêmio afinal? pensa a ex-namorada. ainda bem que existem os haters, pensa ela que quando recorda o número 97 esquece-se que já tomou banho. a ficção é o pesadelo do motor.
como falar a verdade para se vingar de alguém que já falou a verdade?
"houve uma época em que vivi com os bichos. hoje eles são mortos ou escrevem livros enquanto eu jogo minecraft".
terça-feira, 30 de agosto de 2016
Eu conquistava o rei enquanto Teófilo decidiu me deixar
Eu conquistava o rei enquanto Teófilo decidiu me deixar.
Enquanto isso, além daquele tabuleiro de xadrez de pedra e madeira, tia Janaína arrancava os brancos do cabelo em frente a um espelho, a cachaça de minha mãe recém acabava, e se você estivesse lá, veria, seguindo em direção ao sofá e olhando para o tabletes de desenhos marroquinos, o que veria deitado no chão era Teófilo decidindo me deixar.
Assim, aos urubus que são as manhãs de solteira. Aos parques que são os finais de dia para um recém despiedado. Canta Canta menina, embaça essa vida, agarra ele enquanto o tempo boceja. Mais de Teófilo eu tenho, o camareiro da intranquilidade, o charme basco, o bom gosto para o exótico. De Teófilo eu tenho, as formas das pernas, na minha mão o encontro dos lábios, o relevo das bolas, senhoras bolas, inclusive o meu pescoço sambista de alegria, eu tenho é de Teófilo. Mais ainda do Teófilo exato Teófilo que decidiu me deixar.
Duas casas à esquerda.
De nada desconfiei daquele mirradinho. Sempre aprisionado nos românticos ingleses esquecidos pela gramática, pouco restava para o amor de realidades, que eu jurava, era todo meu. Falava pouco Teófilo. Sobre os planetas, dissertava quando se sentia mal-vindo em algum lugar, chá de moças, reunião anual da família, que pensava estava ligado por um papel amassado com carimbo de cartório. Sobre os etruscos, comentava para não discutir sobre vinhos, era difícil pra ele adjetivar a diferença entre um Taunat e um Pinot. Para não falar de si, beijava, me beijava, me beijava sempre.
Eu conquistava o rei.
Não lembro quem ganhou aquela partida de xadrez, não lembro quem nada. Apenas que no carro, Teófilo, que já estava decidido a me deixar, pensava agora em como me deixar. Eu ainda nada sabia, enquanto ele dirigia e pensava em elefantes, eu migrava para a paisagem dos próximos minutos, nós, na cama, num silencio recompensado pelo corpos. Mas talvez, pensando agora no interior daquele Clio 97, se eu quisesse, eu digo talvez, perceberia os olhos fixos ao volante, as frases curtas, as falhas na câmbio, o rosto avermelhado sem porquês nebulosos. Quis chegar logo em casa, disse algo sobre a sua cabeça que não entendi por estar ainda digerindo aquele filme de três noites atrás, que loucura, ser congelado e acordar cem anos depois, sim, é preciso prestar mais atenção no presente e ver mais Cassavetes.
Depois até pensei, deve ter sido difícil para o pobre tomar uma decisão assim, e agir, imagina depois de alguns dois anos de clara reciprocidade, de stop na terapia, de sobriedade das pequenas pílulas, botar tudo a perder e me mandar embora da sua vida. Deve ter encomendado coragem da Coreia do Norte esse garoto. Ainda mais eu, que tanto carinho cultivava com água da chuva, com vitaminas especializadas, amor e amor. Gostava de Teófilo porque ele não sabia ser outra coisa, e justamente por isso, tão legível como um travessão - no íntimo absoluto, pedra de minha ruína interior - eu sabia de tudo e absolutamente tudo tal como o primeiro pensamento de Teófilo decidindo me deixar.
Talvez por isso, mesmo com poucas as peças, o jogo virou tão rapidamente, eu com um olho no peão, outro na solução aquosa que era o corpo de Téo, esparramado no tapete musgo, como um aquário abandonado, quieto mas no reflexo nas paredes espichando os membros em desacordo, debatendo-se, como quem quer ser maior para enfrentar tal desafio, eu vi, seu pensamento se formando, eu estava na mão direita - e da direção do ombro uma o braço uma só frase se formava. Eu que vivi a clandestinidade, onde falar a palavra exata poderia dar o gesto da morte a minha família, desde criança aprendi a ler uma frase ainda em gestação, e no caso de Teófilo ela tentava nascer por todos os lados, os cantos, os orifícios, como um chafariz a marcar um importante momento histórico, eu, no caso a que me fui, você, Teófilo, a tudo presenciou.
E por todo o tempo, intimamente, guardei o segredo, até de mim mesmo, eu sabia que ele sabia, e esperava o retocar das situações, como uma acadêmica do silêncio, me divertia com sua falta de equilíbrio, seu mal-estar na hora de cozinhar, a risada forçada para as mensagens de texto. Como se estivesse, no pior cenário, por trás daqueles eventos, eu, nos bastidores, cega para o observador, atrás dos holofotes, eu a que agia, o deixando sozinho, absolutamente sozinho, sozinho, contudo tão e tão bonito que nem lembrou quem amei de verdade se foi Teófilo ou apenas o fim.
Finalmente quando ele disse o que disse, largando por todas as paredes a impossibilidade da volta, uma palavra é impossível de ser retirada, uma palavra impossível de ser retirada é o material de construção das barcas, que hora de vir Camões, que hora!, eu que me via tão dona do controle, do estádio, senti uma náusea, uma dor, como se eu o tivesse traído ao ter contemplado aquela agonia toda, Teófilo, está tudo bem eu disse, as portas no futuro serão grandes o suficiente para que as pessoas saiam juntas, de mão dadas ou não, mais juntas e nós nos preocupamos com o futuro, até os das portas, não sei se disse isto realmente, ou só pensei, mas o agradeci com um sorriso em cada mão, não sorrisos irônicos ou orgulhosos, mas um sorriso de agradecimento que só é possível com o corpo todo.
Eu conquistei o rei. E é só disto que me recordo.
Enquanto isso, além daquele tabuleiro de xadrez de pedra e madeira, tia Janaína arrancava os brancos do cabelo em frente a um espelho, a cachaça de minha mãe recém acabava, e se você estivesse lá, veria, seguindo em direção ao sofá e olhando para o tabletes de desenhos marroquinos, o que veria deitado no chão era Teófilo decidindo me deixar.
Assim, aos urubus que são as manhãs de solteira. Aos parques que são os finais de dia para um recém despiedado. Canta Canta menina, embaça essa vida, agarra ele enquanto o tempo boceja. Mais de Teófilo eu tenho, o camareiro da intranquilidade, o charme basco, o bom gosto para o exótico. De Teófilo eu tenho, as formas das pernas, na minha mão o encontro dos lábios, o relevo das bolas, senhoras bolas, inclusive o meu pescoço sambista de alegria, eu tenho é de Teófilo. Mais ainda do Teófilo exato Teófilo que decidiu me deixar.
Duas casas à esquerda.
De nada desconfiei daquele mirradinho. Sempre aprisionado nos românticos ingleses esquecidos pela gramática, pouco restava para o amor de realidades, que eu jurava, era todo meu. Falava pouco Teófilo. Sobre os planetas, dissertava quando se sentia mal-vindo em algum lugar, chá de moças, reunião anual da família, que pensava estava ligado por um papel amassado com carimbo de cartório. Sobre os etruscos, comentava para não discutir sobre vinhos, era difícil pra ele adjetivar a diferença entre um Taunat e um Pinot. Para não falar de si, beijava, me beijava, me beijava sempre.
Eu conquistava o rei.
Não lembro quem ganhou aquela partida de xadrez, não lembro quem nada. Apenas que no carro, Teófilo, que já estava decidido a me deixar, pensava agora em como me deixar. Eu ainda nada sabia, enquanto ele dirigia e pensava em elefantes, eu migrava para a paisagem dos próximos minutos, nós, na cama, num silencio recompensado pelo corpos. Mas talvez, pensando agora no interior daquele Clio 97, se eu quisesse, eu digo talvez, perceberia os olhos fixos ao volante, as frases curtas, as falhas na câmbio, o rosto avermelhado sem porquês nebulosos. Quis chegar logo em casa, disse algo sobre a sua cabeça que não entendi por estar ainda digerindo aquele filme de três noites atrás, que loucura, ser congelado e acordar cem anos depois, sim, é preciso prestar mais atenção no presente e ver mais Cassavetes.
Depois até pensei, deve ter sido difícil para o pobre tomar uma decisão assim, e agir, imagina depois de alguns dois anos de clara reciprocidade, de stop na terapia, de sobriedade das pequenas pílulas, botar tudo a perder e me mandar embora da sua vida. Deve ter encomendado coragem da Coreia do Norte esse garoto. Ainda mais eu, que tanto carinho cultivava com água da chuva, com vitaminas especializadas, amor e amor. Gostava de Teófilo porque ele não sabia ser outra coisa, e justamente por isso, tão legível como um travessão - no íntimo absoluto, pedra de minha ruína interior - eu sabia de tudo e absolutamente tudo tal como o primeiro pensamento de Teófilo decidindo me deixar.
Talvez por isso, mesmo com poucas as peças, o jogo virou tão rapidamente, eu com um olho no peão, outro na solução aquosa que era o corpo de Téo, esparramado no tapete musgo, como um aquário abandonado, quieto mas no reflexo nas paredes espichando os membros em desacordo, debatendo-se, como quem quer ser maior para enfrentar tal desafio, eu vi, seu pensamento se formando, eu estava na mão direita - e da direção do ombro uma o braço uma só frase se formava. Eu que vivi a clandestinidade, onde falar a palavra exata poderia dar o gesto da morte a minha família, desde criança aprendi a ler uma frase ainda em gestação, e no caso de Teófilo ela tentava nascer por todos os lados, os cantos, os orifícios, como um chafariz a marcar um importante momento histórico, eu, no caso a que me fui, você, Teófilo, a tudo presenciou.
E por todo o tempo, intimamente, guardei o segredo, até de mim mesmo, eu sabia que ele sabia, e esperava o retocar das situações, como uma acadêmica do silêncio, me divertia com sua falta de equilíbrio, seu mal-estar na hora de cozinhar, a risada forçada para as mensagens de texto. Como se estivesse, no pior cenário, por trás daqueles eventos, eu, nos bastidores, cega para o observador, atrás dos holofotes, eu a que agia, o deixando sozinho, absolutamente sozinho, sozinho, contudo tão e tão bonito que nem lembrou quem amei de verdade se foi Teófilo ou apenas o fim.
Finalmente quando ele disse o que disse, largando por todas as paredes a impossibilidade da volta, uma palavra é impossível de ser retirada, uma palavra impossível de ser retirada é o material de construção das barcas, que hora de vir Camões, que hora!, eu que me via tão dona do controle, do estádio, senti uma náusea, uma dor, como se eu o tivesse traído ao ter contemplado aquela agonia toda, Teófilo, está tudo bem eu disse, as portas no futuro serão grandes o suficiente para que as pessoas saiam juntas, de mão dadas ou não, mais juntas e nós nos preocupamos com o futuro, até os das portas, não sei se disse isto realmente, ou só pensei, mas o agradeci com um sorriso em cada mão, não sorrisos irônicos ou orgulhosos, mas um sorriso de agradecimento que só é possível com o corpo todo.
Eu conquistei o rei. E é só disto que me recordo.
23.12.2010
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