sexta-feira, 14 de março de 2014

la mer

nós costumávamos colecionar folhas secas.

íamos ao parque todas as quintas-feiras à tarde,  dia da folga do meu trabalho. a buscava de carro. uma casa de repouso onde por mais incrível que pareça era difícil conseguir lugar para estacionar porque para algumas pessoas não era um asilo. deveria ser primeiro um estacionamento, e por último, um estacionamento.

ela nunca lembrava que ia a buscar para nossos passeios. era sempre uma surpresa. quando formava uma surpresa com o rosto seus cabelos pareciam aumentar de volume e eu segurava meus olhos como se eles pudessem escapar junto com um bocejo.

no parque me contava sobre as plantas. ela era dessas pessoas. não sabia nada de plantas. mas no passado houve um tempo que desejou saber. por isso no futuro mentia. mentia o nome delas. inventava características. "essa é a alechos vegetaum", seu maior inimigo é a fuinha. era uma senhora engraçada. 

falava muito devagar quando estava mentindo. olhava para o canto direito como quem busca decifrar uma palavra presa num galho de árvore a milhas de distância. mas eu tinha toda paciência do mundo."as figueiras tem esse nome porque o nome ladeira ainda não tinha sido inventado". e eu ria. ria. um tipo de riso moeda de troca para a calma no próximo sono.

ela era dessas pessoas. não acreditou quando contei que não era uma música, e sim, uma memória do mar. não gostava de Debussy. mas gostava desse tipo de música. violinos, alaúdes. não gostava era do nome.

conversávamos por horas enquanto enchíamos cada uma grandes mochilas com restos arbóreos. folhagens. é muito mais fácil arranjar assuntos quando nossos olhos estão no chão, varrendo o espaços em busca de formas figurativas em pedacinhos da natureza. gestalts primitivas. recolhendo a denúncia do vento. da gravidade.

são assim que nossos diálogos costumam nascer. diálogos rasantes os chamna. ela é assim. gosta de dar nome para tudo.me conta que são frases que costumamos trocar com as pessoas mas que nunca levamos de volta porque não lembramos. elas existem enquanto morrem e são acessórios de suportar o tempo.

mas já eu não acredito nisso. lembro de tudo. só não sei onde guardei.

“essa aqui me lembra um ferro de passar. um que ganhei de meu marido mas nunca usei de verdade. só de mentira. joguei da sacada para assustar um menino que tentava abrir um carro que não era dele porque ele era só um menino. um menino com maçarico na mão. quando a gente trai a utilidade dos objetos eles vivem só de mentira. entende?”

para mim aquela folha era redonda, como um ioiô. mas nunca se sabe. nunca se sabe se na década de 70, por exemplo, ioiôs e ferros de passar dividiam um tipo de familiaridade a partir de um design parecido. os desenhos mudam. as funções que são a parte tediosa, essas continuam.

aquilo me fazia feliz. afinal, trabalho seis dias por semana cuidando de pessoas doentes. dentro de um hospital. entrando em veias de gente que não sei o que possuem atrás de seus nomes mas me confiam o corpo até na hora de tomarem banho me confiam seus pequenos kitnets de intimidades.

quando finalmente possuo um dia só meu para fazer coisas que não envolvem assistir a vida das pessoas se soltando devagar de seus mundos como quem torce para que a massa grude no fundo da panela, e a panela aqui pode ser a metáfora do corpo (você escolhe), prefiro isso. passar meu dia com uma senhora que poderia ser minha mãe.

minha tia.
minha vó.
minha sogra.

mas que de fato não me é nada. 

nós não tínhamos sequer alguma coisa que nos prendia uma a outra. 

foi assim. lá estava eu um dia relendo o classificados de domingo não porque eu precisava comprar um apartamento ou conseguir um emprego mas sim porque creio que é mais fácil saber o que queremos quando procuramos o que não sabemos.

então no banco do parque ela chamou-me de iolanda. iolanda acredito era sua filha. uma filha que ela chegou a ter por poucas semanas, descobri depois, morrendo se conhecer nada além dos equipamentos de um hospital. eu pensei "iolanda porque não".

conversamos muito nessa tarde. tanto que enchemos três sacos com folhas. no final da ela me deu um silêncio seu e depois deixou a boca falar

“e agora o que você vai fazer com esses sacos iolanda?”

eu pensei o "que será que sua morta filha diria". portanto não pensei nada.

“não vai colocar fora não é? não me minta. eu sei tudo sobre você. por sei por exemplo: você não é iolanda”

depois fomos tomar um milkshake de leite de cabra com sorvete de mamão. ela me contou mais do que sabia sobre mim. até então eu nem sabia a diferença entre uma cabra e um bode. "o bode come a cabra e nós comemos o bode". então tá. ela dizia.

"você demora muito para escolher o que quer no cardápio porque quando era criança não gostava de tomar leite."

"querida, tudo bem se você passou dez anos de sua vida conhecendo a mesma pessoa em outras cinco diferentes. o importante é que a comida nunca nos decepciona."

ao abrir o porta-mala em casa me deparei com aqueles três pacotes de lixo natural. claro que os guardei, imagina. colocar fora. nunca.

depois de um tempo essa virou uma situação difícil. difícil por exemplo de explicar para mim mãe que achava curioso eu não estar mais em casa durante as folgas.

"me fala o nome dele pelo menos."

"não existe nome porque não existe ele."

"então me diz o nome dela."

"dela quem?"

"a pessoa com quem você está transando nas quintas-feiras."

imagino o que passaria em sua cabeça, uma cabeça que ignoro encontrar durante todos os dias, se soubesse a verdade. verdade: vou passear com uma senhora. alguns anos mais velha do que ela. sim mamãe, te considero velha.

na última vez que a fui buscar na casa de repouso me veio esse pensamento. precisaria ver um advogado.

o advogado era bonito e tinha aquele tipo de corpo de quem gosta de caminhar antes da luz sair do riacho do céu. nós três saímos para ir ao parque, achei que era a melhor forma de explicar a situação. mas no final do passeio ele me puxou para o lado e disse:

"eu não entendi a situação"

depois de duas cervejas:

"eu ainda não entendi a situação. seria mais fácil casar vocês do quê. do quê isso."

como assim não é possível. eu gostava dela. gostava mesmo. deixar ela lá naquele lugar. poderia estar lá em casa. comendo mamão. de alguma forma ficou importante para mim que houvesse algum documento. algum documento provando que tínhamos uma relação, relação de família. que ela não estava sozinha. "gostaria de adotá-la doutor".

"o que te faz pensar que ela é sozinha?"

apenas imaginei que ninguém a fosse visitar. a imaginei jogando xadrez com as regras de dama por confundias as memórias dos jogos. a imaginei vendo novela, indo dormir as cinco horas da tarde por tédio. por ausência.

"porque ninguém vai lá a visitar"

"como você sabe? só vai lá uma vez por semana"

detestei a situação, por tabela, o detestei. acabei fazendo o que costumo na maioria desses casos: pensar em sexo. ele acabou desistindo no meio porque a mulher, com quem estava casado no papel, estava no hospital. nem pra isso ele servia.

então resolvi mudar a minha folga. mas não para vê-la e sim ficar ali perto do seu quarto como quem não quer nada. não deu meia-hora apareceu uma mulher que tinha cabelos pretos como os meus, encaracolado como os meus, só que não era eu.

uma mulher que presumi: ela indicasse linhaça no café da manhã pelo bem do intestino. com quem ela dividia coisas como faça a maior quantidade de sexo que puder agora porque com a idade isso, como todas as coisas, não melhora, e outros conselhos.

elas ficaram juntas com quatro horas. quatro horas ridas, gritadas, divertidas. eu fui embora, com um peito menor que a raiva.

não suportava a ideia de ela, por ter a idade que tinha por ter a personalidade que a cabia, poder ter e muito me confundido com aquela mulher. errado os armários para colocar os dias, embrulhar os rostos e pensar que era ela que a levava ao parque. que a via toda quinta-feira. que levava as folhas secas do chão do parque deixando só as vivas para morrer num futuro. e poder voltar para levá-las de novo.

em casa abri a porta do quartinho e fixei no que tinha em frente. eram vários os sacos de folhas. o cômodo existia só para eles. os dias amarrotados naquelas paredes mínimas. em minha casa nossas tardes estavam bem protegidas.

não sei porque fiz. mas fiz. não sei de onde veio. mas veio. raiva, muita raiva. aquilo precisava de um fim. as coloquei no quintal e pus fogo. uma grande labareda surgiu. enorme. a alta temperatura derreteu minhas calhas. e agora a água fica acumulada quando chove. o telhado pesa. os bombeiros vieram.

mas na verdade foram poucas as folhas queimadas. porque o fogo, até ele, desistiu. o fogo num surto de autonomia desligou sozinho antes. sobraram os sacos em quantidades. as folhas soltas ali no meu gramado. misturadas. escancaradas. como uma cena absurdamente natural.

as folhas voavam entre os dois lados da rua.
as folhas se acumularam em parte na piscina da vizinha bronzeada que se descobriu histérica minutos depois.
as folhas sumiam e se multiplicavam.

quarta-feira, 12 de março de 2014

reorganizar com os tijolos

Ele chega para mim e diz chove em minha casa.

Chove há uma semana sem parar em minha casa e não tenho condições de pescar meu próprio quarto. De resvalar em meu próprio piso. Ser motivo até para espelho de água quebrar.

Com uma mochila pesada e uns olhos com mochilas me pergunta se pode ficar na minha casa.

Por dois meses essa é sua casa. Seu endereço. Aqui lava o sono, tromba em destinos. Seca as costas.

É sábado, as paredes estão opacas, o dia usa cinza, o céu possui cinto, eu o pergunto quanto tempo. Cozinho o almoço. Ele diz que a chuva moveu as paredes onde mora. Que demorará a juntá-las de novo. São pesadas as paredes. Entende que tem que lavar a louça.

Insisto que deve ter algo que possamos fazer. Alguém para chamar. Que água hoje é cara e rara. Quem sabe até revende-la podemos.

Um rio cresceu em minha casa. Responde mesmo que isso fosse. A água não se contentou em dominar o espaço como também matou as coisas. Os móveis. O mais próximo de uma cama é o chão. Não é mais uma casa. É o local onde as coisas já não são mais. As roupas, usou todas na tentativa de reter o líquido. Inclusive, tranca a fala, essa camisa é sua, completa a frase.

Às vezes pego a toalha e descubro a porta do banheiro fechada. Me demora sempre a ideia de não estar sozinho. De não poder controlar o tempo da vida de minha sujeira. Mas salva as outras. Tem outras ocasiões que me treino para fumar um cigarro como armadilha de subverter o tempo. Ele está na sacada. Me conta de seu avô.

Era aviador o meu avô. A mulher dele não sabia, tinham medo dessas coisas, teria um coração pequeno se soubesse. Meu avô saía, ela entendia: vai colher cana. A plantação de cana nessa teoria ficava no aeroclube. Tinha amantes em cinco cidades. Sempre dormia em casa. Cansado.

Nessas vezes, ouvir ele descansa o eixo que alinha meus ouvidos. As distâncias da cara. Diminuem elas, durmo melhor.

Tem dias que estou lendo em meu quarto. Sem nenhuma palavra exibida durante horas. Ele aparece e diz coisas como Minhas costas doem Acho que estou um pouco enjoado Não dormi bem a noite. Porque sou eu o que o ouço nada respondo. Antes me parecia muito estranho a inutilidade dessas informações. Depois compreendi algumas coisas. Gostava de suas atualizações sobre seu corpo. Aquelas palavras não diziam nada. Mas serviam para explicar coisas como porque soava triste o bom dia mais cedo, porque a demora no varrer da sala. Culpar o corpo, pedir desculpas, essas coisas. As aceitava.

Ele chega do serviço as 19h. É uma das coisas que tenho certeza. Ele chega há dois meses e ainda não tenho coragem. Coragem de dizer: Mas afinal, de onde veio aquela chuva toda? Hoje é um desses dias que não tenho coragem, assim sendo gaguejo no início das frases. Chega perto de mim e me surpreende.

Acho que não estou sendo totalmente sincero com você.

Nessa hora começa a chorar de leve. Finjo que não percebo enquanto torço para que a luz falhe.

A verdade é que não tenho coragem de voltar para minha casa. Não sei se suportaria ao encontrá-la intacta. No fundo a chuva não sei. Talvez a tenha trazido ele me conta.

Esse é o momento que temo por mim. Chora muito agora, seu rosto é pequeno para conter as quantias crescentes. Miro os cômodos de minha casa sala cozinha e os imagino como extensões de bochechas, de sua cara. Tudo naufragar.  Poderia o levar para fora, longe, mas entendi que em alguma parte do corpo isso era algo que só desejava com a cabeça ignorando todo o resto.

Eu queria o dizer muitas coisas naquele momento. Que quanto dorme mal na verdade inunda a lavanderia e partes do meu quarto sem saber. Eu as limpo quando consigo. Em outras culpo o cachorro. Penso em nós na sala, na primeira vez que ri sem previsão de parar, lembro de sentir a camisa molhada e que a culpa daquilo era dele. Penso em contar que não abasteci as plantas desde que chegou porque não precisaram mais dessa preocupação.

Poderia dizer coisas como: a parte boa de uma casa é que a reconhecemos pelas rachaduras. Que o fato de não querer voltar a desqualifica como dormitório. Que não é um crime tentar assassinar o lugar onde nos trancávamos para dentro, onde nos sentimos já seguros. Que esse é o tipo de coisa que desqualifica os ponteiros. Essa sua fragilidade, gosto dela. Esse é o verdadeiro esqueleto seu, o verdadeiro material no interior de seus ossos. É tão sincero que expõe até os ossos.

Mas porque sou eu o que escuto não digo nada. O assunto mudo de vez ao falar Acho que meu estômago não está muito bem. Dou  a entender que aquela dor sua me viu como casa também. Portanto não pode ir. Culpar o meu corpo é a nova forma de pedir a alguém que fique. Que me aceite, espero.

quanto custa para não estar longe de aqui

você perderia as passagens quantas vezes?
você possui cinco calças contando as que cabem e não se usam e todas elas não tem bolsos furados.
mas em seu doce (aqui se lê perfeito como gosto) plano eles precisariam ter embora não tenham na mentira que se repete.
você não quer ir ao lugar que não é aqui nunca mais e para isso
corta os bolsos de suas próprias calças coloca os bilhetes de ônibus nos cortes e não nos bolsos.
depois busca um rosto familiar você conta o tempo dessa busca que varia entre minutos e quilômetros só para dizer

terei que ficar

você não precisa de ninguém que vá até a rodoviária para que saiba realmente que você foi ou para
que o convença a não ir você não precisa de nenhum motivo mas mesmo assim gasta 40 reais que prometem lugares onde não chegará todo mês.
só para ver se aqui é mesmo o local onde você realmente chegou ou apenas aconteceu por um tempo de um relance. e claro, para também poder dizer a si mesmo

me custa muito ficar

depois voltar a alimentar os cães, pagar o mercado, com um mê novinho dentro da bolsa.

as tecnologias

a tia-avó mantém a casa dos sobrinhos intacta  mesmo sabendo o que o noticiário acha

todos morreram num acidente de avião fazem 20 os anos atrás

mas a tia-avó não acredita em aviões. portanto não pode cair o que ela não acredita. esse é o argumento que usa com o analista com o corretor o advogado. só que o analista não existe embora ela acredite. o corretor o advogado existem embora ela julgue desnecessário.

ainda acha que um dia voltarão na hora da sobremesa, por isso por precaução há sempre sobremesas, embora o que o aconteceu no centro espírita quando. quando Jonathan o mais velho e último a morrer tenha a dito que de fato todos eles se foram. e mais

é preciso acreditar na tecnologia tia

 não acredita nos mortos. não acredita em Jonathan. para a tia-avó a tecnologia está morta, faz tempo.