nós costumávamos colecionar folhas secas.
íamos ao parque todas as quintas-feiras à tarde, dia da folga do meu trabalho. a buscava de
carro. uma casa de repouso onde por mais incrível que pareça era difícil
conseguir lugar para estacionar porque para algumas pessoas não era um asilo. deveria ser primeiro um
estacionamento, e por último, um estacionamento.
ela nunca lembrava que ia a buscar para nossos passeios. era sempre
uma surpresa. quando formava uma surpresa com o rosto seus cabelos pareciam
aumentar de volume e eu segurava meus olhos como se eles pudessem escapar junto
com um bocejo.
no parque me contava sobre as plantas. ela era dessas pessoas. não
sabia nada de plantas. mas no passado houve um tempo que desejou saber. por
isso no futuro mentia. mentia o nome delas. inventava características.
"essa é a alechos vegetaum", seu maior inimigo é a fuinha. era uma
senhora engraçada.
falava muito devagar quando estava mentindo. olhava para o
canto direito como quem busca decifrar uma palavra presa num galho de árvore a
milhas de distância. mas eu tinha toda paciência do mundo."as figueiras
tem esse nome porque o nome ladeira ainda não tinha sido inventado". e eu
ria. ria. um tipo de riso moeda de troca para a calma no próximo sono.
ela era dessas pessoas. não acreditou quando contei que não era uma música, e sim, uma memória do mar. não gostava de Debussy. mas gostava desse tipo de música. violinos, alaúdes. não gostava era do nome.
conversávamos por horas enquanto enchíamos cada uma grandes
mochilas com restos arbóreos. folhagens. é muito mais fácil arranjar assuntos quando
nossos olhos estão no chão, varrendo o espaços em busca de formas figurativas
em pedacinhos da natureza. gestalts primitivas. recolhendo a denúncia do vento. da gravidade.
são assim que nossos diálogos costumam nascer. diálogos
rasantes os chamna. ela é assim. gosta de dar nome para tudo.me conta que são frases que costumamos trocar com as pessoas mas
que nunca levamos de volta porque não lembramos. elas existem enquanto morrem e
são acessórios de suportar o tempo.
mas já eu não acredito nisso. lembro de tudo. só não sei onde
guardei.
“essa aqui me lembra um ferro de passar. um que ganhei de meu
marido mas nunca usei de verdade. só de mentira. joguei da sacada para assustar
um menino que tentava abrir um carro que não era dele porque ele era só um
menino. um menino com maçarico na mão. quando a gente trai a utilidade dos
objetos eles vivem só de mentira. entende?”
para mim aquela folha era redonda, como um ioiô. mas nunca se
sabe. nunca se sabe se na década de 70, por exemplo, ioiôs e ferros de passar
dividiam um tipo de familiaridade a partir de um design parecido. os desenhos
mudam. as funções que são a parte tediosa, essas continuam.
aquilo me fazia feliz. afinal, trabalho seis dias por semana
cuidando de pessoas doentes. dentro de um hospital. entrando em veias de gente
que não sei o que possuem atrás de seus nomes mas me confiam o corpo até na
hora de tomarem banho me confiam seus pequenos kitnets de intimidades.
quando finalmente possuo um dia só meu para fazer coisas
que não envolvem assistir a vida das pessoas se soltando devagar de seus mundos
como quem torce para que a massa grude no fundo da panela, e a panela aqui pode
ser a metáfora do corpo (você escolhe), prefiro isso. passar meu dia com uma
senhora que poderia ser minha mãe.
minha tia.
minha vó.
minha sogra.
mas que de fato não me é nada.
nós não tínhamos sequer alguma coisa que nos prendia uma a outra.
nós não tínhamos sequer alguma coisa que nos prendia uma a outra.
foi assim. lá estava eu um dia relendo o classificados de domingo não porque eu
precisava comprar um apartamento ou conseguir um emprego mas sim porque creio
que é mais fácil saber o que queremos quando procuramos o que não sabemos.
então no banco do parque ela chamou-me de iolanda. iolanda
acredito era sua filha. uma filha que ela chegou a ter por poucas semanas,
descobri depois, morrendo se conhecer nada além dos equipamentos de um
hospital. eu pensei "iolanda porque não".
conversamos muito nessa tarde. tanto que enchemos três sacos com
folhas. no final da ela me deu um silêncio seu e depois deixou
a boca falar
“e agora o que você vai fazer com esses sacos iolanda?”
eu pensei o "que será que sua morta filha diria". portanto não
pensei nada.
“não vai colocar fora não é? não me minta. eu sei tudo sobre você.
por sei por exemplo: você não é iolanda”
depois fomos tomar um milkshake de leite de cabra com sorvete de
mamão. ela me contou mais do que sabia sobre mim. até então eu nem sabia a diferença entre uma cabra e um bode. "o bode come a cabra e nós comemos o bode". então tá. ela dizia.
"você demora muito para escolher o que quer no cardápio porque
quando era criança não gostava de tomar leite."
"querida, tudo bem se você passou dez anos de sua vida conhecendo a
mesma pessoa em outras cinco diferentes. o importante é que a comida nunca nos
decepciona."
ao abrir o porta-mala em casa me deparei com aqueles três pacotes
de lixo natural. claro que os guardei, imagina. colocar fora. nunca.
depois de um tempo essa virou uma situação difícil. difícil por exemplo de explicar
para mim mãe que achava curioso eu não estar mais em casa durante as folgas.
"me fala o nome dele pelo menos."
"não existe nome porque não existe ele."
"então me diz o nome dela."
"dela quem?"
"a pessoa com quem você está transando nas quintas-feiras."
imagino o que passaria em sua cabeça, uma cabeça que ignoro encontrar durante todos os dias, se soubesse a verdade. verdade: vou passear com uma senhora. alguns anos mais velha do que ela. sim mamãe, te considero velha.
na última vez que a fui buscar na casa de repouso me veio esse pensamento. precisaria ver um advogado.
o advogado era bonito e tinha aquele tipo de corpo de quem gosta de caminhar antes da luz sair do riacho do céu. nós três saímos para ir ao parque, achei que era a melhor forma de explicar a situação. mas no final do passeio ele me puxou para o lado e disse:
"eu não entendi a situação"
depois de duas cervejas:
"eu ainda não entendi a situação. seria mais fácil casar vocês do quê. do quê isso."
como assim não é possível. eu gostava dela. gostava mesmo. deixar ela lá naquele lugar. poderia estar lá em casa. comendo mamão. de alguma forma ficou importante para mim que houvesse algum documento. algum documento provando que tínhamos uma relação, relação de família. que ela não estava sozinha. "gostaria de adotá-la doutor".
"o que te faz pensar que ela é sozinha?"
apenas imaginei que ninguém a fosse visitar. a imaginei jogando xadrez com as regras de dama por confundias as memórias dos jogos. a imaginei vendo novela, indo dormir as cinco horas da tarde por tédio. por ausência.
"porque ninguém vai lá a visitar"
"como você sabe? só vai lá uma vez por semana"
detestei a situação, por tabela, o detestei. acabei fazendo o que costumo na maioria desses casos: pensar em sexo. ele acabou desistindo no meio porque a mulher, com quem estava casado no papel, estava no hospital. nem pra isso ele servia.
então resolvi mudar a minha folga. mas não para vê-la e sim ficar ali perto do seu quarto como quem não quer nada. não deu meia-hora apareceu uma mulher que tinha cabelos pretos como os meus, encaracolado como os meus, só que não era eu.
uma mulher que presumi: ela indicasse linhaça no café da manhã pelo bem do intestino. com quem ela dividia coisas como faça a maior quantidade de sexo que puder agora porque com a idade isso, como todas as coisas, não melhora, e outros conselhos.
elas ficaram juntas com quatro horas. quatro horas ridas, gritadas, divertidas. eu fui embora, com um peito menor que a raiva.
não suportava a ideia de ela, por ter a idade que tinha por ter a personalidade que a cabia, poder ter e muito me confundido com aquela mulher. errado os armários para colocar os dias, embrulhar os rostos e pensar que era ela que a levava ao parque. que a via toda quinta-feira. que levava as folhas secas do chão do parque deixando só as vivas para morrer num futuro. e poder voltar para levá-las de novo.
em casa abri a porta do quartinho e fixei no que tinha em frente. eram vários os sacos de folhas. o cômodo existia só para eles. os dias amarrotados naquelas paredes mínimas. em minha casa nossas tardes estavam bem protegidas.
não sei porque fiz. mas fiz. não sei de onde veio. mas veio. raiva, muita raiva. aquilo precisava de um fim. as coloquei no quintal e pus fogo. uma grande labareda surgiu. enorme. a alta temperatura derreteu minhas calhas. e agora a água fica acumulada quando chove. o telhado pesa. os bombeiros vieram.
mas na verdade foram poucas as folhas queimadas. porque o fogo, até ele, desistiu. o fogo num surto de autonomia desligou sozinho antes. sobraram os sacos em quantidades. as folhas soltas ali no meu gramado. misturadas. escancaradas. como uma cena absurdamente natural.
as folhas voavam entre os dois lados da rua.
as folhas se acumularam em parte na piscina da vizinha bronzeada que se descobriu histérica minutos depois.
as folhas sumiam e se multiplicavam.
as folhas voavam entre os dois lados da rua.
as folhas se acumularam em parte na piscina da vizinha bronzeada que se descobriu histérica minutos depois.
as folhas sumiam e se multiplicavam.