Ela precisa de água. Há
duas semanas não sai de casa. Nem pelas janelas do apartamento arrisca outro
olhar. Estuda e trabalha, tenta ler Derrida no francês, chateia-se e se esconde
por trás de um Burroughs, recolhida. Em tese, estaria ela trabalhando em uma história,
estaria ela em busca de um fim. Mas não qualquer um. Apenas aquele que
impactasse seu editor a ponto de garantir aquela viagem para Bruxelas, um tal
encontro de ensaístas latino-americanos, que por um paradoxo total, será
realizado na Europa. Em tese, as festas de conhecidos, os lançamentos de livros de seus semelhantes, os drinques oportunistas nos quais deveria comparecer, tiveram infelizmente que serem interrompidos devido “a intensa carga de
trabalho”. Para começar que neste ramo algumas misturas com vodcas e apertos de
mão fazem parte de qualquer trabalho. Ninguém comprará este seu pequeno
atentado de solidão. Todos sabem a verdade e talvez a tratem com euforia por isso. A
solidão forçada já pariu ao longo das décadas muitos bons livros em forma de
mistérios. Porém, ao mesmo tempo, até seus amigos mais íntimos desconfiam que seu
primeiro dom seria o suborno inevitável para a tristeza, e a escrita, talvez,
seria apenas uma breve consequência, não muito chamativa ou oportuna, que sempre ficará em segundo plano.
Ela escreve em intervalos nos quais ignora reflexos
possíveis, como no bule de chá, ou no espelho da sala. Contardo, um de seus
personagens, a dá nojo. É a receita para fazer a si mesma mal. Não sabe se pode
lidar com ele por muito. O ideal seria livrar-se de sua covardia, de suas
formas baixas de relacionar frustração com violência pessoal. Contudo, é sobre
isso mesmo que discorre. O péssimo. Não seria capaz de escrever sobre outras
coisas. Principalmente agora, só, num loft decorado pelo antigo morador.
Identifica-se com Contardo, dá a ele algumas sequências genéticas próprias. A
raiva está entre elas. Divide seu sofrimento ao mesmo tempo que o incentiva
através de outros nomes como o dele. Um jornalista estúpido da revista A Margem, em um ensaio há alguns meses,
tinha chamado a atenção e afirmado em
letras gordas a devoção dela por anti-heróis. “O escárnio e a aceitação do
desejo, a moral interrompida, são por si só seus personagens. Ler a sua obra é
o atestado disso. Uma melancolia fácil e sem motivo. Por alguma razão, a autora
confunde esgoto com maquiagem”. Esse pequeno revoltado, assim como a maioria
dos jornalistas que conhece, a deixou irritada por um tempo. Pensou em mandar
uma carta soletrando todos aspectos invisíveis mas presentes que a visão pouco
aguçada desse suposto profissional não conseguiu aterrissar. Passou por sua
cabeça até mesmo ligar para Nelson, editor-chefe da revista, e mandar que
demitisse o filho da puta. No fim, a energia se foi. Estava na cara que era
alguém tentando mostrar trabalho. Logo logo o pobre coitado iria acabar com sua
própria carreira de iniciante num tapar de olhos. Se Philip Roth, ou seus fãs,
soubessem o que ele andou escrevendo sobre ele por aqui, nem teria chance de se esconder sem perder algumas propostas.
De maneira inevitável, chegará um momento que precisará ir
ao supermercado. Comprar comida, materiais de higiene. Mas procrastina esse
dia com todas as armas. Agora está configurada para a paralisação máxima, modo
caverna. Até agora, poucas ligações. Sua irmã insiste em ir visitá-la. Assim
como o restante de sua linhagem, ela acredita que seu suposto trabalho é uma de
suas invenções. E preocupa-se de onde deve vir, misteriosamente, o dinheiro de
seu sustento. Sua irmã veste-se como uma primeira-ministra. Com terninhos bem
passados e meias de calça impecáveis. Rega bem suas panturrilhas com sapatos
altos de agulha. Trabalha no consulado da Sérvia e possui todos as
características de uma boa burocrata tal como saber puxar o saco de alguém em
seis línguas diferentes. Na verdade, gostaria de escrever sobre sua irmã, se é,
que já não o fez. Nesse sentido tem que concordar com o tal jornalista. Seus
personagens prediletos tem fome da mais desinteressante baixeza existencial.
Aos poucos termina um capítulo. Detesta as palavras que usa.
Detesta como soa quando as lê em voz alto. Parece um grito de giz contra quadro
negro, parece um grito acalmado de um vidro em queda. Algo interrompe seu desgosto exagerado. A campainha toca.
Ele está em sua cozinha. Sua roupa de trabalho possui um
certo tipo de sujeira com o qual ela não se importa. Gosta até. Se pergunta de
onde veio cada macha. De onde veio cada arranhão. Que roupas usa quando não está
esfregando-se no chão, concertando vazamentos em grandes apartamentos no centro
da cidade. Ele pergunta qual é o problema. Ela diz o que sabe. O cano estourou.
Tudo inundou. E agora é isso. Registro fechado, alguns dias sem água. “Por que
demorou tanto para me chamar?”. Ele tem um sotaque de outro estado. Ela arrisca
Paraíba. Talvez Alagoas. Ela sabe que não tem a mínima ideia de como é o jeito
de falar de um ou outro pois nunca esteve nesses lugares. Mas gosta de
imaginar. Gosta de pensar que sabe. “Eu sempre demoro um pouco para tudo. É
assim que começo a fazer algo, demorando”. Ela está sem graça. Sem graça frente
a aquele homem que supostamente não a fornece nenhum motivo para se sentir
incômoda, desajustada, trêmula. Mas faz surgir tudo isso ao mesmo tempo. Ela deseja que ele fique. Seria tão fácil se
escondesse a chave da porta. “Isso é fácil de resolver, vejo esse problema
todos os dias”. Ela pensa se ele está farto. Se ele está farto da mesmice, das
reprises dos dias iguais. Ela pensa que pode ajudar nisso. Fazer este um
especial. Talvez algo que envolvesse roupas caídas. Ela, com aquelas pantufas ridículas de quem não está esperando visita
nenhuma, fica-o observando enquanto trabalha. O vai e vem das ferramentas, o
limpar-se no pano extremamente cheio de graxa. Ela o olha como se ele fosse um
animal, exótico. Uma salvação. Como se fosse tudo que ela gostaria de ser. Aquela
pele queimada, as tatuagens mal feitas. Gostaria de ser assim. Simples, forte. Os músculos extravagantes e sem tantos
porquês. Ela o admira demais a esse ponto. Como se fosse a criatura no mundo
que mais merecesse seu respeito. Ela sente inveja de suas supostas
preocupações. Dos problemas práticos com os quais ele lida. De sua rotina. De
sua vida amorosa, que nessa altura, começa a viajar em possíveis
possibilidades. Inventa para si que deve ser ampla e descomplicada. Transar com algumas mulheres que o olham uma só
vez. Ir embora sem limpar-se, sem tomar banho, com o pau ainda sujo guardado na
braguilha. Ele é funcional. Necessário. Preciso. Importante. Lida com
preocupações reais. Sabe resolver realidades reais. Ele é a realidade. A realidade que ela tanto procura apreender em seus livros. Mas que no fundo nada sabe. Em outras ocasiões, ela
sentiria medo. Medo de ter alguém estranho dentro de sua casa. Ainda mais um
homem. Medo do que possa acontecer, dele a extorquir ou a violentar de alguma
forma, medo de não conseguir o tratar de forma normal, sem exibir seus tantos
preconceitos, medo de se sentir fraca. Porque afinal de contas sua origem é
escandinava, foi criada no sul do país, sua pele é branca e seus olhos verdes,
sempre estudara em bons colégios e quando criança queria, por incrível que
pareça, ser Oscar Wilde. Só que mais mulher ainda. Não há como negar os
abismos. Há indiferença. Isso ela sabe. Isso ela previu. O que não imaginava
era sentir que ele estão tão acima dela. Que ela na verdade não é nada. E
sente-se absurdamente humilhada por esta condição. Ela sabe diferenciar as
rochas, seus nomes e cores. Mas ele as movimenta, as constrói. Nunca
experimentara tal sentimento de inferioridade. Principalmente da forma como aconteceu.
Ela pergunta se ele deseja tomar algo. Uma limonada talvez.
Depois ela torce para que ele diga não. Afinal, não tem nada em casa para oferecer.
Não tem nada para oferecer a ninguém. “Estou bem, obrigado”. O homem não
entende, mas também não se importa com isso, com o fato de que ela,
aparentemente uma pessoa tão ocupada está a dedicar tempo para conversar com
ele. Mas nem pensa muito sobre o assunto. “Você é da onde?”, “Acre minha
senhora, Rio Branco”. Ela não se sente bem com essa cordialidade. Não a merece.
Pensa que deveria ser o contrário, que o respeito deveria ser oposto. Errou sua
origem como provavelmente tudo sobre ele. Mas não pensa assim. Pensa que
acertou de uma forma diferente. “E como você veio parar aqui, é longe, não é?”.
“É uma longa história. Eu precisava ir, tem um momento que precisamos ir sabe.
Aquele é um lugar para nascer, e não para morrer. Tentei São Paulo por um tempo,
mas detestei. Vocês aqui no sul parecem ser menos intrometidos, menos bagunçados,
prefiro assim”. O interrogatório para. “A senhora, o que faz?”, “Escrevo, digo,
sou escritora”. “Nunca conheci uma. A senhora deve ser boa”. “Deveria, mas não
sou”. Na verdade ela se acha boa. Incrivelmente boa. Mas sabe que a humildade é
uma forma de trato social imprescindível para qualquer convívio. Por isso a usa, mesmo que enferrujada. Quando ela é humilde, normalmente, esta tentando seduzir alguém. “Você lê, gosta?”. “Alguma coisa. Às vezes, no
almoço para o tempo passar. Coisa de policial, essas coisas”. Ela pensa em
emprestá-lo algum livro. Patrícia Highsmith, Agatha Christie. Mas essa é uma
estratégia que ela usa para se aproximar de pessoas, de quase todo mundo. Criar
laços por empréstimos de livros. Além disso, nem sabe se ele conhece as tais obras. E
se ele a conhece, provavelmente, cairá muito em seu conceito.
Eles ficam em silêncio. Ela começa a gostar de como esse é
quebrado. Com o cair dos alicates, o martelar na pia. Desejaria ir no banheiro,
quebrar sem querer algo hidráulico ultra necessário, mas nem saberia o que.
Quer que ele fique mais tempo. Quer que ele fique lá, modelo-vivo para os seus
olhos, presença a fazer daquela casa uma casa, a ensinar sobre a essência das
coisas. Ela é exatamente a personificação do que necessita. Não quer esquecer nada sobre ele. Seus coturnos consertados diversas
vezes com cola de sapato, sua barba feita com correria por isso não feita, suas
concentrações de negro. Seja nos cabelos pretos, ou nos cílios, compridos e
escuros. Queria seu sotaque no toca-discos. Precisa o sequestrar de alguma
forma. Poderia agarrá-lo, consumi-lo. Ele a faz sentir-se fraca, como ninguém nunca antes ousou. E é especial por isso.
De repente, olhado sua pele ela enxerga algo. Seu suor desprende-se e pratica expedições. O homem sua. Os pratos serão limpos em breve. As roupas lavadas. E a casa retornará a funcionar.
De repente, olhado sua pele ela enxerga algo. Seu suor desprende-se e pratica expedições. O homem sua. Os pratos serão limpos em breve. As roupas lavadas. E a casa retornará a funcionar.