quarta-feira, 13 de março de 2013

Água

Está sem água. Recorda de outra vez que isso ocorreu. Uma viagem ao Peru, quando jovem. No acampamento só vendiam pisco e uma cerveja de trigo de nome estranho, tudo menos água. Também não havia chuveiros para todos. Naquela época pouco importava. Pouco importava até a separação entre o dia e a noite. Ambos brigavam e se reconciliavam diante de seus olhos acordados. Mas agora não quer contratempos. Não quer uma pequena aventura em sua rotina, em sua casa. Já não pode viver sem a dependência. É necessário pontualidade, é necessário a chatice britânica na chegada da internet, no registro de luz. Está sem água. Isso a faz sentir-se patética. Impotente. Os pratos se acumulam na pia. Não a agrada lembrar-se pela sujeira o que jantou três dias atrás. Isso é, sopa de legumes. Estão lá os legumes, ainda. O banheiro começa a exibir seu verdadeiro cheiro. As roupas sujas estão há um passo de trocar os guarda-roupas pelas lixeiras.

Ela precisa de água. Há duas semanas não sai de casa. Nem pelas janelas do apartamento arrisca outro olhar. Estuda e trabalha, tenta ler Derrida no francês, chateia-se e se esconde por trás de um Burroughs, recolhida. Em tese, estaria ela trabalhando em uma história, estaria ela em busca de um fim. Mas não qualquer um. Apenas aquele que impactasse seu editor a ponto de garantir aquela viagem para Bruxelas, um tal encontro de ensaístas latino-americanos, que por um paradoxo total, será realizado na Europa. Em tese, as festas de conhecidos, os lançamentos de livros de seus semelhantes, os drinques oportunistas nos quais deveria comparecer, tiveram infelizmente que serem interrompidos devido “a intensa carga de trabalho”. Para começar que neste ramo algumas misturas com vodcas e apertos de mão fazem parte de qualquer trabalho. Ninguém comprará este seu pequeno atentado de solidão. Todos sabem a verdade e talvez a tratem com euforia por isso. A solidão forçada já pariu ao longo das décadas muitos bons livros em forma de mistérios. Porém, ao mesmo tempo, até seus amigos mais íntimos desconfiam que seu primeiro dom seria o suborno inevitável para a tristeza, e a escrita, talvez, seria apenas uma breve consequência, não muito chamativa ou oportuna, que sempre ficará em segundo plano.

Ela escreve em intervalos nos quais ignora reflexos possíveis, como no bule de chá, ou no espelho da sala. Contardo, um de seus personagens, a dá nojo. É a receita para fazer a si mesma mal. Não sabe se pode lidar com ele por muito. O ideal seria livrar-se de sua covardia, de suas formas baixas de relacionar frustração com violência pessoal. Contudo, é sobre isso mesmo que discorre. O péssimo. Não seria capaz de escrever sobre outras coisas. Principalmente agora, só, num loft decorado pelo antigo morador. Identifica-se com Contardo, dá a ele algumas sequências genéticas próprias. A raiva está entre elas. Divide seu sofrimento ao mesmo tempo que o incentiva através de outros nomes como o dele. Um jornalista estúpido da revista A Margem, em um ensaio há alguns meses, tinha  chamado a atenção e afirmado em letras gordas a devoção dela por anti-heróis. “O escárnio e a aceitação do desejo, a moral interrompida, são por si só seus personagens. Ler a sua obra é o atestado disso. Uma melancolia fácil e sem motivo. Por alguma razão, a autora confunde esgoto com maquiagem”. Esse pequeno revoltado, assim como a maioria dos jornalistas que conhece, a deixou irritada por um tempo. Pensou em mandar uma carta soletrando todos aspectos invisíveis mas presentes que a visão pouco aguçada desse suposto profissional não conseguiu aterrissar. Passou por sua cabeça até mesmo ligar para Nelson, editor-chefe da revista, e mandar que demitisse o filho da puta. No fim, a energia se foi. Estava na cara que era alguém tentando mostrar trabalho. Logo logo o pobre coitado iria acabar com sua própria carreira de iniciante num tapar de olhos. Se Philip Roth, ou seus fãs, soubessem o que ele andou escrevendo sobre ele por aqui, nem teria chance de se esconder sem perder algumas propostas.

De maneira inevitável, chegará um momento que precisará ir ao supermercado. Comprar comida, materiais de higiene. Mas procrastina esse dia com todas as armas. Agora está configurada para a paralisação máxima, modo caverna. Até agora, poucas ligações. Sua irmã insiste em ir visitá-la. Assim como o restante de sua linhagem, ela acredita que seu suposto trabalho é uma de suas invenções. E preocupa-se de onde deve vir, misteriosamente, o dinheiro de seu sustento. Sua irmã veste-se como uma primeira-ministra. Com terninhos bem passados e meias de calça impecáveis. Rega bem suas panturrilhas com sapatos altos de agulha. Trabalha no consulado da Sérvia e possui todos as características de uma boa burocrata tal como saber puxar o saco de alguém em seis línguas diferentes. Na verdade, gostaria de escrever sobre sua irmã, se é, que já não o fez. Nesse sentido tem que concordar com o tal jornalista. Seus personagens prediletos tem fome da mais desinteressante baixeza existencial.

Aos poucos termina um capítulo. Detesta as palavras que usa. Detesta como soa quando as lê em voz alto. Parece um grito de giz contra quadro negro, parece um grito acalmado de um vidro em queda. Algo interrompe seu desgosto exagerado. A campainha toca.

Ele está em sua cozinha. Sua roupa de trabalho possui um certo tipo de sujeira com o qual ela não se importa. Gosta até. Se pergunta de onde veio cada macha. De onde veio cada arranhão. Que roupas usa quando não está esfregando-se no chão, concertando vazamentos em grandes apartamentos no centro da cidade. Ele pergunta qual é o problema. Ela diz o que sabe. O cano estourou. Tudo inundou. E agora é isso. Registro fechado, alguns dias sem água. “Por que demorou tanto para me chamar?”. Ele tem um sotaque de outro estado. Ela arrisca Paraíba. Talvez Alagoas. Ela sabe que não tem a mínima ideia de como é o jeito de falar de um ou outro pois nunca esteve nesses lugares. Mas gosta de imaginar. Gosta de pensar que sabe. “Eu sempre demoro um pouco para tudo. É assim que começo a fazer algo, demorando”. Ela está sem graça. Sem graça frente a aquele homem que supostamente não a fornece nenhum motivo para se sentir incômoda, desajustada, trêmula. Mas faz surgir tudo isso ao mesmo tempo. Ela deseja que ele fique. Seria tão fácil se escondesse a chave da porta. “Isso é fácil de resolver, vejo esse problema todos os dias”. Ela pensa se ele está farto. Se ele está farto da mesmice, das reprises dos dias iguais. Ela pensa que pode ajudar nisso. Fazer este um especial. Talvez algo que envolvesse roupas caídas. Ela, com aquelas pantufas ridículas de quem não está esperando visita nenhuma, fica-o observando enquanto trabalha. O vai e vem das ferramentas, o limpar-se no pano extremamente cheio de graxa. Ela o olha como se ele fosse um animal, exótico. Uma salvação. Como se fosse tudo que ela gostaria de ser. Aquela pele queimada, as tatuagens mal feitas. Gostaria de ser assim. Simples, forte. Os músculos extravagantes e sem tantos porquês. Ela o admira demais a esse ponto. Como se fosse a criatura no mundo que mais merecesse seu respeito. Ela sente inveja de suas supostas preocupações. Dos problemas práticos com os quais ele lida. De sua rotina. De sua vida amorosa, que nessa altura, começa a viajar em possíveis possibilidades. Inventa para si que deve ser ampla e descomplicada. Transar com algumas mulheres que o olham uma só vez. Ir embora sem limpar-se, sem tomar banho, com o pau ainda sujo guardado na braguilha. Ele é funcional. Necessário. Preciso. Importante. Lida com preocupações reais. Sabe resolver realidades reais. Ele é a realidade. A realidade que ela tanto procura apreender em seus livros. Mas que no fundo nada sabe. Em outras ocasiões, ela sentiria medo. Medo de ter alguém estranho dentro de sua casa. Ainda mais um homem. Medo do que possa acontecer, dele a extorquir ou a violentar de alguma forma, medo de não conseguir o tratar de forma normal, sem exibir seus tantos preconceitos, medo de se sentir fraca. Porque afinal de contas sua origem é escandinava, foi criada no sul do país, sua pele é branca e seus olhos verdes, sempre estudara em bons colégios e quando criança queria, por incrível que pareça, ser Oscar Wilde. Só que mais mulher ainda. Não há como negar os abismos. Há indiferença. Isso ela sabe. Isso ela previu. O que não imaginava era sentir que ele estão tão acima dela. Que ela na verdade não é nada. E sente-se absurdamente humilhada por esta condição. Ela sabe diferenciar as rochas, seus nomes e cores. Mas ele as movimenta, as constrói. Nunca experimentara tal sentimento de inferioridade. Principalmente da forma como aconteceu.

Ela pergunta se ele deseja tomar algo. Uma limonada talvez. Depois ela torce para que ele diga não. Afinal, não tem nada em casa para oferecer. Não tem nada para oferecer a ninguém. “Estou bem, obrigado”. O homem não entende, mas também não se importa com isso, com o fato de que ela, aparentemente uma pessoa tão ocupada está a dedicar tempo para conversar com ele. Mas nem pensa muito sobre o assunto. “Você é da onde?”, “Acre minha senhora, Rio Branco”. Ela não se sente bem com essa cordialidade. Não a merece. Pensa que deveria ser o contrário, que o respeito deveria ser oposto. Errou sua origem como provavelmente tudo sobre ele. Mas não pensa assim. Pensa que acertou de uma forma diferente. “E como você veio parar aqui, é longe, não é?”. “É uma longa história. Eu precisava ir, tem um momento que precisamos ir sabe. Aquele é um lugar para nascer, e não para morrer. Tentei São Paulo por um tempo, mas detestei. Vocês aqui no sul parecem ser menos intrometidos, menos bagunçados, prefiro assim”. O interrogatório para. “A senhora, o que faz?”, “Escrevo, digo, sou escritora”. “Nunca conheci uma. A senhora deve ser boa”. “Deveria, mas não sou”. Na verdade ela se acha boa. Incrivelmente boa. Mas sabe que a humildade é uma forma de trato social imprescindível para qualquer convívio. Por isso a usa, mesmo que enferrujada. Quando ela é humilde, normalmente, esta tentando seduzir alguém. “Você lê, gosta?”. “Alguma coisa. Às vezes, no almoço para o tempo passar. Coisa de policial, essas coisas”. Ela pensa em emprestá-lo algum livro. Patrícia Highsmith, Agatha Christie. Mas essa é uma estratégia que ela usa para se aproximar de pessoas, de quase todo mundo. Criar laços por empréstimos de livros. Além disso, nem sabe se ele conhece as tais obras. E se ele a conhece, provavelmente, cairá muito em seu conceito.

Eles ficam em silêncio. Ela começa a gostar de como esse é quebrado. Com o cair dos alicates, o martelar na pia. Desejaria ir no banheiro, quebrar sem querer algo hidráulico ultra necessário, mas nem saberia o que. Quer que ele fique mais tempo. Quer que ele fique lá, modelo-vivo para os seus olhos, presença a fazer daquela casa uma casa, a ensinar sobre a essência das coisas. Ela é exatamente a personificação do que necessita. Não quer esquecer nada sobre ele. Seus coturnos consertados diversas vezes com cola de sapato, sua barba feita com correria por isso não feita, suas concentrações de negro. Seja nos cabelos pretos, ou nos cílios, compridos e escuros. Queria seu sotaque no toca-discos. Precisa o sequestrar de alguma forma. Poderia agarrá-lo, consumi-lo. Ele a faz sentir-se fraca, como ninguém nunca antes ousou. E é especial por isso.

De repente, olhado sua pele ela enxerga algo. Seu suor desprende-se e pratica expedições. O homem sua. Os pratos serão limpos em breve. As roupas lavadas. E a casa retornará a funcionar.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Infância


Ficarás atrás do vidro da sala. Ficarás sempre atrás dos vidros. Com audição incompleta. E a mensagem em parte, uma imaginação. Assim como aquela memória, gestos que contaram a história, principalmente aqueles que fogem do painel de controle, o grito das mãos, os dedos intimidadores, ombros espremidos e levantados. Depois, as provas estarão por ai. Nos rostos sem firmeza, anestesiados pela faca fria de uma decepção, de um não saber que deixa os olhos nos cantos tentando arrancar alguma explicação.

É uma criança agora. Prende os cabelos para evitar que demonstre algum crescimento, mesmo com ossos mais pesados que os do ano anterior, desmente tudo com atílios coloridos cansando as raízes do cabelo.

Insiste em prender-se nessa imagem que lhe deram e nunca reclamou pela facilidade de justificar e surpreender. Tal como a maioria das crianças de sua idade gosta de ficar acordada até tarde, principalmente agora, que reverteu o medo que sentia por ela em poder sobre a própria. E assim passava suas noites lendo atlas de países que sentia-se íntima ao decorar com esforço suas capitais, uma forma estranha de sentir-se no mundo, vendo programas de TV em língua inglesa e registrando as palavras incomodas, e no computador vendo imagens antigas dos parentes, tentando compreender o que deu-lhes a face atual.

Gosta de desenhar rostos de pessoas, em cultivar um olhar esparramado nas feições de uma foto, um artista que lhe agrada sem entender ainda as fiações do desejo, um esportista com o qual se identifica pela soberania sobre a morte, encarando-a de um paredão de pedra em uma escalada por exemplo. Fica a treinar desenhos de narizes, traços de olhos, as linhas que demonstram as bochechas, que distinguem uma felicidade ausente.

Gosta muito de observar as pessoas, por um interesse é claro, puro e obsessivo de apreender com suas linhas, decorar seus encaixes, entender o quem ali, seja os olhos, os ouvidos ou a boca, a faz mais saliente em nossa memória. Às vezes só lembra das testas, às vezes, apenas das sobrancelhas.

Mas apesar de sempre preencher os bueiros do tempo com o exercício de algum roubo de feições, uma tentativa de criar companhias no papel, sempre com aquele olhar ao exterior humano mais frágil, sabe que não será uma desenhista, ou até mesmo uma artista. Pelo contrário, tem plena consciência disso.

Talvez o que grite mais forte seja a vontade de fazer das coisas matéria para seu álbum, de manter a memória sempre alimentada. Essa inclinação para a natureza erosiva dos rostos veio cedo na verdade. Desde pequena demonstrava afeição pelo teatro, treinando suas expressões em frente a um espelho ou no encontro com algum amigo desconhecido de seu pai, algo que ela achava muito engraçado era assustá-los com suas personagens ácidas e pouco calorosas. Talvez por isso passasse boa parte dos dias contendo-se o máximo possível, poucos diálogos e afeições, como se fosse uma grande concentração antes da peça, chagava nas aulas de teatro no colégio com uma bagagem cheia de energia.

Nessa época também, se assustará bastante ao perceber a tamanha facilidade que tinha para formar quadros de sofrimento e tristeza com a face, e qualquer erro de comunicação com suas musculatura poderia demonstrar tal melancolia, o que não era muito agradável.