quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Tese de Espelho - Tese 5

Você está na cozinha dele. Agora você procura entender coisas, muitas coisas, dentre elas o porquê daquela coleção de pimentas (vermelhas, pretas, americana, branca, chilli)  - nomes pronunciadas com entonações de carinho semelhante a falas sobre pais e filhos. Aliás, quando foi que investigar as discrepâncias, sabores e anatomias das pimentas começou a ser tão assim importante para ele? Silêncio. Você o olha imaginando como o perdeu. Quando foi o momento da ruptura, da explosão, do blecaute. Agora você esconde a mão na barba para demonstrar interesse alheio, uma estratégia estranha. Ele fala das Filipinas. Vocês estão na sala. Ele te mostra fotografias. Numa delas nativos da tribo Tagbanua pousam ao lado dele. Um dos locais, o mais alto que os demais, usa um chapéu que você o deu. Que você o deu. Era fevereiro de um ano que começava e você o presenteou com aquele panamá legítimo dizendo “para que o sol só te traga boas coisas”. Você pensa como que do outro lado do mundo alguém usa seu ex-chapéu. Como foi que a sua memória viajou tão longe. Mas agora você se dedica a raciocinar de forma preocupada aonde estava enquanto as Filipinas e todo o Mar de Sulu era terreno de caça de futuro para ele. Enquanto que ele corria atrás de herbívoros exóticos, de exóticas dançarinas locais, de toda a biologia que antes nunca tivera dado tanta atenção, você fazia o que mesmo? Lavava a louça ao som de T-Bonne Walker se achando o centro da festa do mundo, procurava uma remuneração decente em anúncios na internet, usava sempre as mesmas desculpas para não sorrir. De tal modo que quando ele chegou de viagem você temeu perguntas do tipo “e você como está”. Você temia dizer que aqui o tempo não passou apenas se fez de morto, que aqui só a espera lançou seu tapete vermelho para qualquer surpresa que não compareceu ao encontro, que aqui você continua o mesmo, apensar de tudo – o mesmo. Ele está feliz e decide te apresentar uma nova bebida que trouxe de Mali. Parece estar disposto a fazer tudo para te convencer que  para alguém no planeta você foi ausência. Que você importa. Te fazer sofrido é uma maneira de te elogiar. Ele serve a vocês dois. Você está cansado. Já havia começado a beber cedo, no meio da tarde, entre uma justificativa e outra – ambas furadas. Ele só fala sobre o que você não conhece. Talvez ache que esse desconhecimento faça bem a você. Te tira do sofá da realidade. Refresca. Talvez ele só queira te convencer que a distância fez bem para todos. Ele está bonito, está tão bonito quanto o dia que foi embora. Ele já foi embora tantas vezes que você sempre o olha como uma partida que ainda não aconteceu. Talvez seja isto que o faça bonito. Ele tem o tipo de fraqueza que você gostaria de ter, a de não se importar, aquela que faz abrir os olhos ser ao mesmo tempo uma fuga. Você o vê com convicção. Mas não consegue se concentrar. Você lembra de uma viagem que fizeram. Um sítio. Um final de semana. Vocês supostamente dividiriam o mesmo quarto. As malas de vocês dois, juntas lá estavam, mas ele nunca apareceu para dormir. Sozinho. Você lembra que naquela viagem o encontrou chorando baixo, perto de uma cachoeira. Foi um abraço forte, o que você o concedeu. Você não perguntou nada, exclamou silêncio, o respeitou até o exato ponto de só o dar o que ele precisava – a certeza de uma proximidade. Você lembra de tocar a pele dele mista de águas, pele delicada, correntezas de suor e água doce, a natureza e o homem cobrindo os mesmos braços e pernas. Você lembra que o abraço fora intenso, que você o pressionou contra seu peito – você lembra da força necessária que fez de propósito para poder sentir os ossos dele contra os seus. De encontrar o queixo na descida do pescoço dele e forjar uma espécie de calma. Ainda depois de tudo isso, você dera a ele um sorriso que nem sabe de onde tirou. Mas agora você retorna a essa sala. Se pergunta se este estoque de sorrisos já acabou, sendo usado sem escrúpulos no tempo. Ele pergunta sobre os amigos de vocês em comum. Você sente o cheiro de apartamento fechado, o tempo apodrecido nesse décimo andar, enquanto que ele: longe. Pergunta de Aléxia. Você trava. Guarda os olhos apontados apenas para lugares vazios Você começa a imaginar aquele tempo. Pensava que hoje seria apenas vocês dois e o presente. Questiona se ele realmente tem direito de mexer nos antigos papéis, que tanto tempo você demorou para organizar. Se sente traído pelo despertar de memórias. Violentado. Mas acaba por lembrar dos dois juntos. De repente, enquanto seu amigo fala, emocionado e cabisbaixo sobre isso que nada mais é um sonho abortado, um choro enterrado vivo, você só os imagina ali, naquele apartamento. Ambos nus. Transando. Naqueles toca-discos, naquela rede da sacada. Seu amigo a fazendo gritar em cima do tapete, ela o chupando no balcão da cozinha. Ambos desesperados em fugir um para o dentro do outro, em foder até o suor secar. Você pensa naquela paixão como energia perdida. Como um passeio no precipício. Aquilo o enoja. Primeiro porque o filho que veio de tantas trepadas até o amanhecer foi uma melancolia com dentes de ferro que nunca largou dos braços dele. Uma tristeza sem cálculos possíveis. Você se sente estranho de imaginar ele de pênis ereto nos dias de ontem com ele te olhando tentando convencer que agora é outro. Enquanto você evoca essa pequena viagem incontrolável e assustadora, perde um pouco da conversa. Durante alguns minutos você não ouviu praticamente nada do que ele disse e absolutamente não faz ideia do que falar agora. Você corta o assunto que nem sabe do que se tratava, pega uma cerveja do congelador. Você está absolutamente dentro apenas de si mesmo desde que chegou aquela casa, louco para  sair, louco para não lembrar do que ele representa, do que ele traz à tona. Mas então o olha. Suavemente diz que sentiu sua falta, enquanto o antigo desconforto de segundos atrás vai indo embora e você sente o que fez o que deveria ser feito -  o que se esperava. E de fato você sentiu isso. Durou pouco aquele adorável esquecimento daqueles anos. Mas agora ele retorna e rompe com esse seu doce passeio lhe dizendo o quanto que é impossível fugir de algo vivo. Passado, porém, vivo.

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