Começou enquanto eu buscava algumas pastas para arquivar
documentos que tinham recentemente chegado ao Museu, processos antigos, do tempo de Duque de Caxias. Desci para a salinha azul, um pequeno
amontoado de centímetros onde guardamos material de escritório, e ao abrir uma
das gavetas do armário me deparei com um seguimento enorme de lápis novos,
perfeitamente apontados e prontos para o uso. Não resisti em pegar um deles,
mas antes pensei em alguma rápida
estratégia para não machucar algum dedo com o perigo afiado desses objetos
novos.
Foi nesse momento que me veio então. Meus olhos
levitaram-se, e por segundos, já sentia em mim um cheiro de laranjeiras. Eu
havia me transportado para um local aprazível, inclinado ao magnífico. Parecia
um parque de uma grande cidade, mas não
era nenhuma das quais eu conhecia aqui do sul. As árvores tinham troncos altos
e grossos, limitavam a presença do sol redesenhando os contornos de sua luz. Eu
me sentia protegido e de certa forma triunfante, como alguma conquista pessoal
tivesse me levado para li. Havia farelos de castanhas em minha boca, e eu
lutava para engoli-las decentemente.
Dois meninos jogavam cartas em minha frente, enquanto isso, dois cães
observavam o jogo com um certo interesse. O vento batia quente em meu ombro,
enquanto eu virava-me toda hora em busca de um convidado que encontrava-se
atrasado. Apesar de uma certa angústia que amplifica o grito dos dedos, havia
algo de paz que me assegurava um certo descansar.
Logo voltei dessa paisagem. No retornar, percebi que o lápis que
eu provavelmente escolhi com um delineado filtro de gosto estava no
chão. A esbelta ponta havia perdido um pouco de seu poder, rachada, deixou
resquícios em forma de farelos de grafite no carpete. Ficara lá, dessa forma
mesmo, desenhando um tipo abrupto de choque ou queda, registro do momento em
que me veio tal lembrança.
Desde então, essa memória tem me acompanhado nos trens e
trilhos e não faço ideia qual seja sua origem. No início, não dei muita atenção
ao fato. Há dias que havia em meu pulso uma fadiga larga, que amassava para o
abate meu pequeno corpo, o dando sono e cansaço. A rotina abatida de meu
trabalho tinha o poder de dar flechas certeiras aos ponteiros do relógio. Por
isso, julguei que poderia ser um estado de vigília, um princípio de sono, ou
seja, uma manifestação anacrônica do oceano enigmático que o inconsciente
sustenta. Porém, me mantive curioso. No mesmo dia havia de ter de encontrar
Oscar. Enquanto eu o esperava na charutaria esquisita na qual ele mesmo havia
escolhido, tintilou novamente a recordação daquela lembrança. Horas depois,
quando de pijama me ofereci ao sono, desviei a culpa de minha insônia, antes
devida ao pássaro irritante da vizinha de cima, para o mistério daquela
lembrança. Não conseguia parar de pensar de onde tinha vindo aquilo.
Quando dormi, finalmente, sonhei com a antiga casa de Bagé.
As brigas de mamãe e vovó, que estranhavam-se por vários motivos sendo o principal
a insistência de minha vó por dar passe livre aos animais campeiros na sala de
estar. Quando dirigiam-se a mim, ambas adotavam maneiras pessoais porém
igualmente aconchegantes de carinho, e aqueles tempos de infância constam como
os melhores quando a questão é sossego. Talvez pudesse ter algo a ver com esse
tempo pensei. Algo que, quando menino na estância, vivi, ficou guardado e só
despertou recentemente de meu caderno de anotações. Era uma solução à altura,
mas logo a descartei, pois não havia parque como aquele na cidade. Terminei meu
salgado, e voltei ao trabalho no museu.
Passou-se meia
semana. Eu já havia eliminado todas as
possibilidades prováveis em relação a memórias da juventude até agora. A viagem
para o Uruguai ou o acampamento nas Missões, nada fechava em tantos elementos.
Percebi então que eu poderia estar sendo um tolo. Talvez, tal memória pudesse
ter sido de algum filme que eu assisti ou algum livro, que por deslize,
assimilei como sendo uma narração pessoal, quando na verdade, nem a própria
ficção da lembrança poderia ter sido por mim elaborada. Os últimos filmes que assisti
tinham sido, na maioria, filmes frios. Um documentário sobre as florestas da
Sibéria, uma obra de Ozon,e, novamente uma trilogia de Sukurov que nem
lembro-me direito. Quanto aos livros, lia e muito para o meu mestrado em
História Contemporânea, e Woolf e Prado júnior eram caminhos descartáveis para
a solução chaveada. Ainda assim, depois de tanto silêncio devotado para tentar
concentrar-se nessas possibilidades, e análise apuradas das obras, desbanquei o
queixo com um suspiro na fronteira de ser classificado como um angustiante
grito.
Não acredito na crença que discursa sobre vidas passadas.
Então nem me dispensei para pensar sobre isso. O que mais me incomodava é que
eu sabia que possivelmente essa turbulência agrediria minha rotina para sempre.
A tal imagem que me elevava a um tipo perto da paz poderia levar a combustão
minha paciência, tornando-se uma pedra em meu sapato até eu estando em completa
nudez. Não queria em mim retrato de agonia semelhante a essa descrita para
sempre.
Eu precisava de novas pistas, porém, havia uma barreira.
Fazia tempo que não me vinha a lembrança, e esse tempo era uma brecha na qual o
esquecimento fazia de palco para aparecer. A distância da imagem me fazia
perder os detalhes, tornar a recordação borrada, e eu não podia confiar nos elementos
instáveis que me viam a mente quando pensava na memória. Ela esfacelava-se, e ficava em minha apenas a
sensação do estar lá. As folhas daquelas árvores apodreciam e aqueles meninos
envelheciam e iam ao pó. Precisava, portanto, esperar o momento que a dita
memória decidisse me visitar. Aguardar o seu engatilhar atento.
Em uma sexta-feira a noite, enfim, me veio. Solitariamente,
em meio a alguns grupos de pessoas que alto falavam bebiam e fumavam, enquanto
pensava na possibilidade de não aparecer para trabalhar na semana que estava
por vir, tive novamente renascida aquela sensação de proteção e paz. Aquela
agonia da dúvida perfuradora sumiu, e enquanto isso, eu apenas aproveitava
aquela adocicada paisagem. Uma sensação nobre de quem sabe que algo bom está
por vir, não importa que as pegadas do desastre sejam grandes e apontem para o
bairro de dormir. Enquanto tudo acontecia, falhei em tentar captar os mínimos detalhes
que poderiam ser pistas preciosas para posteriormente pensar na resolução do
mistério. Não me atrevi a ter atenção. Apenas deixei o tempo passar em mim
dando o meu tempo como veículo para que a recordação pudesse existir.
Novamente, quanto passou o espetáculo, retornei a clausura de meus pensamentos.
Irritava-me não ter poder sobre minha própria mente, que dirá, de meu destino.
Se esqueci daquilo, imagina o quanto do meu vivido pode ter desaparecido? Um
esforço em vão, um sacrifício de passado para que um futuro (que não se
mostrava por enquanto dos mais merecidos) pudesse tranquilamente surgir. Pensei
em voltar para a cultura dos diários que tive enquanto adolescente, mas me
pareceu uma besteira. Talvez esquecer seja o melhor que possamos fazer para
conservar o róseo de nossos rostos pensei, enquanto sentiam-me uma vítima da enganação
propiciada pela demência estoneante de minha mente. Talvez o custo da idade
fosse não lembrar das coisas e assim não poder voltar .
Logo logo, minha dúvida começou a mudar de foco. Cada vez
menos me importava onde eu estava, mas sim, saber quem era a pessoa que eu
esperava se tornou a dúvida principal. Talvez essa pessoa me ajudasse a saber
quando isso ocorreu, e me contaria quando, afinal, que tudo se deu, e talvez
ainda, me de um motivo para saber porque eu não recordo facilmente essa
memória.Ou simplesmente, saber quem era me faria lembrar na hora de todo o
resto. Ainda, de certa forma, a tal pessoa era responsável pelo filete de
agonia que quebrava a bela sensação da lembrança, a única centelha de incomodo
daquilo tudo. Precisava saber o final daquela tarde.
No sábado seguinte, vivi momentos de fobia. Senti-me um
velho por não poder recordar minhas próprias criações, rir e orgulhar-se de
minhas próprias atitudes que transpuseram-se ao eterno através do esquecimento.
Há anos sentia a idade rondando meus freios, mas nunca quis assumir tal
condição. Talvez fosse hora.
Uma coisa era certa.
Com absoluta certeza aquela lembrança não tratava-se de uma invenção. Devorei
Freud e seus apóstolos, mas o mais importante, me mirei certeiro. Não era bobo
ou criativo o suficiente para gerar tal arapuca.
Domingo de manhã resolvi passear. Há um sorvete artesanal
muito bom perto de um ótimo sebo no centro, no qual costumo ir. Na situação
estranha, entre colheradas de melado com creme gelado e tentativas de esmaecer
a mente nos versos de Juan Ramón, que tudo teve um fim. Entre uma pálpebra
confusa e outra, acordo de algum poema com a voz inconfundível de Antônia. Ela
está posta ao meu lado, e já já puxa uma cadeira para sentar-se. Tinha me
esquecido que ela morava ali por perto. Com todo egoísmo de meus pensamentos,
que só dedicados aaquele acontecido, nem passou o fato por minha cabeça, se não
poderia tê-la até convidado para um chá e dividir com ela o atual drama.
Antônia tem um rosto cumprido e cuida-se de um jeito estranho, usando
utensílios de beleza adversos, porém, conservando um ar cansado nas rotas de
seu rosto, mais derrotado que o normal para alguém de sua idade, dona de uma
certa beleza. Ultimamente começamos novamente a nos afeiçoar de forma amiga um
pelo outro. Nos encontrávamos toda a semana, com exceção das últimas pois ela
estava em São Paulo a trabalho. É uma mulher inteligente com quem as horas
nunca são perdidas.
Não resisti a informá-la da minha situação. Já tinha tentado
a explicar anteriormente para Oscar, mas sua sobrancelha tinha ficado demais
inquieta com meu relato. Jurando ter sido uma de minhas frescuras mandou eu esquecer e lembrar de alguns prazeres da
vida que estão longe da esquina do chatear-se com tudo. Antes dela por-se a contar
das ocorrências vividas em São Paulo (detesto ouvir falatórios e narrações de
viagem), a interrompi de forma brusca. Quieta, a mulher ouviu meu relato até a
última palavra. Surpreso com a falta de interrupção pela parte dela, tentei
usar tantos detalhes que no final tinha esgotado o que dizer, mesmo que tenha
sentido que seus olhos ansiavam por mais informações, me emudeci.
Depois de um tempo, visivelmente atingida, Antônia deixou a
confortabilidade da cadeira e levantou-se para sinalizar uma fuga ou abandono.
Tristemente decepcionada, deu-me para meu mistério uma data e um local:
“ Agosto de 82, Praça
do Reino”
Continuei confuso, e pretendendo entender de vez aquilo
tudo.
“Esperei você até perto da noite, mas você não veio, muito
menos avisou. Fiquei lá sozinha, a ver o dia
morrer, ”
Antônia foi embora de forma silenciosa, talvez sem pensar em
ver-me novamente. Naquele momento uma leve felicidade me aportou. Acalmei-me
como nunca antes, enquanto os nervos aterrissavam
da tontura em um acamado descanso. “Nada escapa a essa mente que nada esquece”,
pensei. Minha idade estava absolvida. Posso dizer que encontrava-me em paz.
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