quinta-feira, 7 de junho de 2012

gosto de castanhas


Começou enquanto eu buscava algumas pastas para arquivar documentos que tinham recentemente chegado ao Museu, processos antigos, do tempo de Duque de Caxias. Desci para a salinha azul, um pequeno amontoado de centímetros onde guardamos material de escritório, e ao abrir uma das gavetas do armário me deparei com um seguimento enorme de lápis novos, perfeitamente apontados e prontos para o uso. Não resisti em pegar um deles, mas antes pensei em  alguma rápida estratégia para não machucar algum dedo com o perigo afiado desses objetos novos.

Foi nesse momento que me veio então. Meus olhos levitaram-se, e por segundos, já sentia em mim um cheiro de laranjeiras. Eu havia me transportado para um local aprazível, inclinado ao magnífico. Parecia um parque de uma grande cidade,  mas não era nenhuma das quais eu conhecia aqui do sul. As árvores tinham troncos altos e grossos, limitavam a presença do sol redesenhando os contornos de sua luz. Eu me sentia protegido e de certa forma triunfante, como alguma conquista pessoal tivesse me levado para li. Havia farelos de castanhas em minha boca, e eu lutava  para engoli-las decentemente. Dois meninos jogavam cartas em minha frente, enquanto isso, dois cães observavam o jogo com um certo interesse. O vento batia quente em meu ombro, enquanto eu virava-me toda hora em busca de um convidado que encontrava-se atrasado. Apesar de uma certa angústia que amplifica o grito dos dedos, havia algo de paz que me assegurava um certo descansar.

Logo voltei dessa paisagem. No retornar, percebi que o  lápis que  eu provavelmente escolhi com um delineado filtro de gosto estava no chão. A esbelta ponta havia perdido um pouco de seu poder, rachada, deixou resquícios em forma de farelos de grafite no carpete. Ficara lá, dessa forma mesmo, desenhando um tipo abrupto de choque ou queda, registro do momento em que me veio tal lembrança.

Desde então, essa memória tem me acompanhado nos trens e trilhos e não faço ideia qual seja sua origem. No início, não dei muita atenção ao fato. Há dias que havia em meu pulso uma fadiga larga, que amassava para o abate meu pequeno corpo, o dando sono e cansaço. A rotina abatida de meu trabalho tinha o poder de dar flechas certeiras aos ponteiros do relógio. Por isso, julguei que poderia ser um estado de vigília, um princípio de sono, ou seja, uma manifestação anacrônica do oceano enigmático que o inconsciente sustenta. Porém, me mantive curioso. No mesmo dia havia de ter de encontrar Oscar. Enquanto eu o esperava na charutaria esquisita na qual ele mesmo havia escolhido, tintilou novamente a recordação daquela lembrança. Horas depois, quando de pijama me ofereci ao sono, desviei a culpa de minha insônia, antes devida ao pássaro irritante da vizinha de cima, para o mistério daquela lembrança. Não conseguia parar de pensar de onde tinha vindo aquilo.

Quando dormi, finalmente, sonhei com a antiga casa de Bagé. As brigas de mamãe e vovó, que estranhavam-se por vários motivos sendo o principal a insistência de minha vó por dar passe livre aos animais campeiros na sala de estar. Quando dirigiam-se a mim, ambas adotavam maneiras pessoais porém igualmente aconchegantes de carinho, e aqueles tempos de infância constam como os melhores quando a questão é sossego. Talvez pudesse ter algo a ver com esse tempo pensei. Algo que, quando menino na estância, vivi, ficou guardado e só despertou recentemente de meu caderno de anotações. Era uma solução à altura, mas logo a descartei, pois não havia parque como aquele na cidade. Terminei meu salgado, e voltei ao trabalho no museu.

Passou-se  meia semana. Eu já  havia eliminado todas as possibilidades prováveis em relação a memórias da juventude até agora. A viagem para o Uruguai ou o acampamento nas Missões, nada fechava em tantos elementos. Percebi então que eu poderia estar sendo um tolo. Talvez, tal memória pudesse ter sido de algum filme que eu assisti ou algum livro, que por deslize, assimilei como sendo uma narração pessoal, quando na verdade, nem a própria ficção da lembrança poderia ter sido por mim elaborada. Os últimos filmes que assisti tinham sido, na maioria, filmes frios. Um documentário sobre as florestas da Sibéria, uma obra de Ozon,e, novamente uma trilogia de Sukurov que nem lembro-me direito. Quanto aos livros, lia e muito para o meu mestrado em História Contemporânea, e Woolf e Prado júnior eram caminhos descartáveis para a solução chaveada. Ainda assim, depois de tanto silêncio devotado para tentar concentrar-se nessas possibilidades, e análise apuradas das obras, desbanquei o queixo com um suspiro na fronteira de ser classificado como um angustiante grito.

Não acredito na crença que discursa sobre vidas passadas. Então nem me dispensei para pensar sobre isso. O que mais me incomodava é que eu sabia que possivelmente essa turbulência agrediria minha rotina para sempre. A tal imagem que me elevava a um tipo perto da paz poderia levar a combustão minha paciência, tornando-se uma pedra em meu sapato até eu estando em completa nudez. Não queria em mim retrato de agonia semelhante a essa descrita para sempre.

Eu precisava de novas pistas, porém, havia uma barreira. Fazia tempo que não me vinha a lembrança, e esse tempo era uma brecha na qual o esquecimento fazia de palco para aparecer. A distância da imagem me fazia perder os detalhes, tornar a recordação borrada,  e eu não podia confiar nos elementos instáveis que me viam a mente quando pensava na memória. Ela  esfacelava-se, e ficava em minha apenas a sensação do estar lá. As folhas daquelas árvores apodreciam e aqueles meninos envelheciam e iam ao pó. Precisava, portanto, esperar o momento que a dita memória decidisse me visitar. Aguardar o seu engatilhar atento.
Em uma sexta-feira a noite, enfim, me veio. Solitariamente, em meio a alguns grupos de pessoas que alto falavam bebiam e fumavam, enquanto pensava na possibilidade de não aparecer para trabalhar na semana que estava por vir, tive novamente renascida aquela sensação de proteção e paz. Aquela agonia da dúvida perfuradora sumiu, e enquanto isso, eu apenas aproveitava aquela adocicada paisagem. Uma sensação nobre de quem sabe que algo bom está por vir, não importa que as pegadas do desastre sejam grandes e apontem para o bairro de dormir. Enquanto tudo acontecia, falhei em tentar captar os mínimos detalhes que poderiam ser pistas preciosas para posteriormente pensar na resolução do mistério. Não me atrevi a ter atenção. Apenas deixei o tempo passar em mim dando o meu tempo como veículo para que a recordação pudesse existir. Novamente, quanto passou o espetáculo, retornei a clausura de meus pensamentos. Irritava-me não ter poder sobre minha própria mente, que dirá, de meu destino. Se esqueci daquilo, imagina o quanto do meu vivido pode ter desaparecido? Um esforço em vão, um sacrifício de passado para que um futuro (que não se mostrava por enquanto dos mais merecidos) pudesse tranquilamente surgir. Pensei em voltar para a cultura dos diários que tive enquanto adolescente, mas me pareceu uma besteira. Talvez esquecer seja o melhor que possamos fazer para conservar o róseo de nossos rostos pensei, enquanto sentiam-me uma vítima da enganação propiciada pela demência estoneante de minha mente. Talvez o custo da idade fosse não lembrar das coisas e assim não poder voltar .

Logo logo, minha dúvida começou a mudar de foco. Cada vez menos me importava onde eu estava, mas sim, saber quem era a pessoa que eu esperava se tornou a dúvida principal. Talvez essa pessoa me ajudasse a saber quando isso ocorreu, e me contaria quando, afinal, que tudo se deu, e talvez ainda, me de um motivo para saber porque eu não recordo facilmente essa memória.Ou simplesmente, saber quem era me faria lembrar na hora de todo o resto. Ainda, de certa forma, a tal pessoa era responsável pelo filete de agonia que quebrava a bela sensação da lembrança, a única centelha de incomodo daquilo tudo. Precisava saber o final daquela tarde.

No sábado seguinte, vivi momentos de fobia. Senti-me um velho por não poder recordar minhas próprias criações, rir e orgulhar-se de minhas próprias atitudes que transpuseram-se ao eterno através do esquecimento. Há anos sentia a idade rondando meus freios, mas nunca quis assumir tal condição. Talvez fosse hora.

 Uma coisa era certa. Com absoluta certeza aquela lembrança não tratava-se de uma invenção. Devorei Freud e seus apóstolos, mas o mais importante, me mirei certeiro. Não era bobo ou criativo o suficiente para gerar tal arapuca.

Domingo de manhã resolvi passear. Há um sorvete artesanal muito bom perto de um ótimo sebo no centro, no qual costumo ir. Na situação estranha, entre colheradas de melado com creme gelado e tentativas de esmaecer a mente nos versos de Juan Ramón, que tudo teve um fim. Entre uma pálpebra confusa e outra, acordo de algum poema com a voz inconfundível de Antônia. Ela está posta ao meu lado, e já já puxa uma cadeira para sentar-se. Tinha me esquecido que ela morava ali por perto. Com todo egoísmo de meus pensamentos, que só dedicados aaquele acontecido, nem passou o fato por minha cabeça, se não poderia tê-la até convidado para um chá e dividir com ela o atual drama. Antônia tem um rosto cumprido e cuida-se de um jeito estranho, usando utensílios de beleza adversos, porém, conservando um ar cansado nas rotas de seu rosto, mais derrotado que o normal para alguém de sua idade, dona de uma certa beleza. Ultimamente começamos novamente a nos afeiçoar de forma amiga um pelo outro. Nos encontrávamos toda a semana, com exceção das últimas pois ela estava em São Paulo a trabalho. É uma mulher inteligente com quem as horas nunca são perdidas.

Não resisti a informá-la da minha situação. Já tinha tentado a explicar anteriormente para Oscar, mas sua sobrancelha tinha ficado demais inquieta com meu relato. Jurando ter sido uma de minhas frescuras mandou  eu esquecer e lembrar de alguns prazeres da vida que estão longe da esquina do chatear-se com tudo. Antes dela por-se a contar das ocorrências vividas em São Paulo (detesto ouvir falatórios e narrações de viagem), a interrompi de forma brusca. Quieta, a mulher ouviu meu relato até a última palavra. Surpreso com a falta de interrupção pela parte dela, tentei usar tantos detalhes que no final tinha esgotado o que dizer, mesmo que tenha sentido que seus olhos ansiavam por mais informações, me emudeci.

Depois de um tempo, visivelmente atingida, Antônia deixou a confortabilidade da cadeira e levantou-se para sinalizar uma fuga ou abandono. Tristemente decepcionada, deu-me para meu mistério uma data e um local:

 “ Agosto de 82, Praça do Reino”

Continuei confuso, e pretendendo entender de vez aquilo tudo.

“Esperei você até perto da noite, mas você não veio, muito menos avisou. Fiquei lá sozinha, a  ver o dia morrer, ”

Antônia foi embora de forma silenciosa, talvez sem pensar em ver-me novamente. Naquele momento uma leve felicidade me aportou. Acalmei-me como  nunca antes, enquanto os nervos aterrissavam da tontura em um acamado descanso. “Nada escapa a essa mente que nada esquece”, pensei. Minha idade estava absolvida. Posso dizer que encontrava-me em paz.