quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Reencontro

Naquele dia resolveram se encontrar sem marcar hora nem lugar, sem fazer concessões ao mal tempo, ao acaso frouxo, a soberania do caos urbano.Decidiram se encontrar sem eles mesmos o saber, acharam-se os olhos entre a sessão de vegetais do mercado central, seguiram-se até a sorveteria na ala b, e só desencontraram-se, quando ambos o fecharam em sintonia ao longo de um abraço com vida própria que durou o tempo exato de sentirem falta desse encaixar de corpos.ela perguntou da vida ele disse que já gastava muito tempo nessa fala mansa de viveres e desviveres e o que queria saber mesmo agora era da onde vinha aqueles cabelos curtos, e aquele olhar telescópio que parecia enxergar tudo. Ela respondeu rindo que o cabelo não veio, mas foi, foi junto com o apartamento no Bom Fim, e as vizinhas maconheiras de terceira idade, foi junto com os sonhos nada comestíveis de um amor perito em carne e charmoso no papel, foi junto com os tropeços nos móveis inúteis que mobiliou a sua vida, essa antiga, que assegura ela, já foi. Ela diz que ele também estava muito diferente, parecia um Gatsby relançado dentro daquelas roupas, e teve medo que seu olhar caminha-se para a pretensão de um Bourboun.Perguntou se lia, se li, o que escrevia, se escrevia o que via, se via o que falava.Ele disse que as pessoas só liam e viam para ter o que escrever, só escreviam para ter do que falar, e que sim, como ainda se considerava uma pessoa embora meio acomodado nas rachaduras dos anos, conquistou com bandeirinha e tudo a crônica, na terra arenosa que à gastos fazia alguma ou outra poesia murcha.Ela disse que não importava o que ele via, lia, ou falava, mas tinha que parar agora mesmo, e falou um nome esquisito de um livro chinês antigo que ele não entendeu mas desviou os olhos com um famoso “hãa” e boiando em um pensamento, de que sobre isso tudo que sabia era alguns filmes do besouro verde, do Bruce Lee, que vira quando mais novo. Os dois sentaram-se a um café como desconhecidos que apontam-se mutualmente, como se aquele filhete de passado que os unia, só servisse para os machucar.Aos poucos ela reconhecia aquele homem de contornos seguros, sem um traço fora da linha, de sorriso barril, que embebedava a todos quando conquistado. Ao pouco ela separou do perfume que ele usava o cheiro das manhãs de julho quando brigavam para não sair das cobertas. Aos poucos ele via nela, a vista que antes morou, lembrou como via o mundo de cima na altura daqueles olhos. Pensou naquelas poesias arenosas que as vezes encontravam uma praia, pensou nos envelopes cheios dela que deixou de entregar, e agora se assemelham a verdadeiros tesouros no fundo do mar.Ela sorria mais que o normal, e seu riso ia ao chão de tão forte, e ele balançava-se aproveitando as nuances do papo para aportar na sua pele.Pareciam estrangeiros sem farda por fora, e tinham curiosidade se isso continuava por dentro. De alguma forma ainda sentiam-se um pouco um do outro. Seja na hora de fazer um café para trabalhar, desatar uma briga com empreiteiro, seja nos seus posicionamentos liberais políticos defendidos a palavra e gritos, ou na hora de comprar um disco francês em algum brique. Queriam falar das revoltas que colocaram em cabide, das importâncias que fugiram se mala, dos giros da vida que não deram em vôo sustentável, das exposições dos modernos que iam para rir e comer canapé, dos santos caídos, dos seus heróis que perderam a capa, e a fascinação das rimas, da viagem aos Estados Unidos que mais pareciam uma ida a Hong Kong.Foram surpreendidos pelo garçon que trazia seus pedidos, um capucchino para ela, e um expresso duplo sem chantilly, que aliás, veio com chantily, e não somente, veio com isso como também uma seqüência de palavras ordenadas de maneira prejudicial a saúde do emprego do garçon coitado, esse escondido em meio dos próprios ombros enquanto, ele o criticava severamente em tom de chamar a atenção dos estranhos no local, tudo por causa de um bendito chantilly, pensava ela que coisa mais besta.Então ela lembrou de coisas bestas e começou a ficar irritada com aquela cena, ela que sempre defendeu os trabalhadores ingênuos, e não suportava já antes aquelas escamas burguesadas dele, ainda mais agora dentro daquele terno saído do romance de Fitzgerald, pediu para ele parar. Ele interrompeu seu discurso, e a olhou, e logo ressurgiu, a apaticidade com os julgamentos superficiais dela, a bagunça do guarda roupa e incrível desorganização com seus pertences que acabavam sempre despertencidos, suas crises de pânico, suas discussões sobre Matisse e Picasso que acabavam em greve sexual e artística, seu apego exagerado por filmes lentos de países pobres, sua irresponsabilidade com eletrônicos, sem contar as viagens ao interior na casa dos mais dela em que voltava sempre com uma alergia externa nova. Aos poucos ela foi lembrando do barulho de bomba V2 que dormia com ela enquanto ela tentava pregar os olhos sem tem as olheiras, da sua inflexibilidade com horários, da forma desastrosa que tratava seus amigos do teatro, dos seus CDs do Cat Steveans, que ela jurava não entender, do ciúme virulento contra seus amigos autroproclamados homossexuais, da metricidade que defendia na poesia, nos julgamentos,das doses de cerveja que terminavam com doses de uísque que terminavam, bem nem ela lembrava no que que terminavam. Enquanto tentavam respirar algum ar puro sem teia de aranha ela disse:

-Agora só falta dizer que Borges é Melhor que Machado e Pound é melhor que Eliot.

E tenham dito, foram embora do café cada um para seu lado, nem trocaram telefones. Os números, esses também, eram os mesmos.

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