quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

27.12


Procuro pelo cantor. As ruas negam sua função. Me atrapalham. Enchem as pernas de cascalhos antigo. Contudo, sou branca que nem uma recém-nascida e não desisto. Continuo as peripécias infinitas para a lógica. Vês como estou mudada meu bem? Hoje aceito no estômago até o que não é literatura. E faço barca dos olhos onde a luz falta. Aprendi muitas coisas nos desprazeres, como por exemplo, nos vemos inteiros apenas nos pedaços. No pensamento estirado, nos dedos amputados. Não concorda benzinho? Sei que falo solitariamente. E que essa incrível produção de disfunção da língua escrita não me deposita um centavo ou me garante um amor. Sei os caminhos exatos para me desfalcar. Nisso sou expert. Já ganhei  um alambique e eternas dores para cabeça brincando de engenheiro de mentira. Mas agora, depois do falso telhado e todas as tentativas na arma de brinquedo, ano por aí. Vira e mexe rebolo nas escrituras. Falo mal do gramado alheio. Gasto tempo no escuro, nas conversas cíclicas, nas falsas promessas e enganos mútuos. A pegadinha é que emagreci. E bastante. Foi-se foi a fome, mas o peso ficou, a sufocar os animais do rosto. Podes me ver por aí sempre quando ousares comprar teu próprio mal em uma banquinha de revista, em uma conversa arrependida. Em um vai-vém nostálgicos. E assim se vão as semanas. Os amigos envelhecem por dentro. E daqui ninguém me convence que sou jovem. Conquisto meu próprio rosto durante o banho (o que dele sobrou). Sei dos buracos irredutíveis, da mata silvestre que cresce nos descuidos da oleosa pele. Tenho aquele corpo do tipo das possibilidades reduzidas. Das apostas cansadas. Dos remendos que desistem de tentar de novo. Do elástico cansado que entrega-se. Há uma guerra para ser ganha e nenhuma esperança nos pentes das armas. A violência, minto, não gosto. Observo o temporal que nos destelha e faz sair frases rudes, adeuses malcriados e sedes selvagens. Só observo. Enquanto isso, sigo o caminho do corpo e os ossos de sempre me moldam. Nessa casa fico, reciosa e anônima. Faço minha concheira. Estabeleço laços espirituais pelo jogo de forca. E se me obedeço, é deslize. Hoje me vi verdade: me pintei falsa suja louca para merecer um lugar na dor. As justificativas riem fofoqueiras de longe, não me dão a  mínima. Sem motivo mancho o rosto só por acordar, rotina de se esquecer.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Tese de Espelho - Tese 5

Você está na cozinha dele. Agora você procura entender coisas, muitas coisas, dentre elas o porquê daquela coleção de pimentas (vermelhas, pretas, americana, branca, chilli)  - nomes pronunciadas com entonações de carinho semelhante a falas sobre pais e filhos. Aliás, quando foi que investigar as discrepâncias, sabores e anatomias das pimentas começou a ser tão assim importante para ele? Silêncio. Você o olha imaginando como o perdeu. Quando foi o momento da ruptura, da explosão, do blecaute. Agora você esconde a mão na barba para demonstrar interesse alheio, uma estratégia estranha. Ele fala das Filipinas. Vocês estão na sala. Ele te mostra fotografias. Numa delas nativos da tribo Tagbanua pousam ao lado dele. Um dos locais, o mais alto que os demais, usa um chapéu que você o deu. Que você o deu. Era fevereiro de um ano que começava e você o presenteou com aquele panamá legítimo dizendo “para que o sol só te traga boas coisas”. Você pensa como que do outro lado do mundo alguém usa seu ex-chapéu. Como foi que a sua memória viajou tão longe. Mas agora você se dedica a raciocinar de forma preocupada aonde estava enquanto as Filipinas e todo o Mar de Sulu era terreno de caça de futuro para ele. Enquanto que ele corria atrás de herbívoros exóticos, de exóticas dançarinas locais, de toda a biologia que antes nunca tivera dado tanta atenção, você fazia o que mesmo? Lavava a louça ao som de T-Bonne Walker se achando o centro da festa do mundo, procurava uma remuneração decente em anúncios na internet, usava sempre as mesmas desculpas para não sorrir. De tal modo que quando ele chegou de viagem você temeu perguntas do tipo “e você como está”. Você temia dizer que aqui o tempo não passou apenas se fez de morto, que aqui só a espera lançou seu tapete vermelho para qualquer surpresa que não compareceu ao encontro, que aqui você continua o mesmo, apensar de tudo – o mesmo. Ele está feliz e decide te apresentar uma nova bebida que trouxe de Mali. Parece estar disposto a fazer tudo para te convencer que  para alguém no planeta você foi ausência. Que você importa. Te fazer sofrido é uma maneira de te elogiar. Ele serve a vocês dois. Você está cansado. Já havia começado a beber cedo, no meio da tarde, entre uma justificativa e outra – ambas furadas. Ele só fala sobre o que você não conhece. Talvez ache que esse desconhecimento faça bem a você. Te tira do sofá da realidade. Refresca. Talvez ele só queira te convencer que a distância fez bem para todos. Ele está bonito, está tão bonito quanto o dia que foi embora. Ele já foi embora tantas vezes que você sempre o olha como uma partida que ainda não aconteceu. Talvez seja isto que o faça bonito. Ele tem o tipo de fraqueza que você gostaria de ter, a de não se importar, aquela que faz abrir os olhos ser ao mesmo tempo uma fuga. Você o vê com convicção. Mas não consegue se concentrar. Você lembra de uma viagem que fizeram. Um sítio. Um final de semana. Vocês supostamente dividiriam o mesmo quarto. As malas de vocês dois, juntas lá estavam, mas ele nunca apareceu para dormir. Sozinho. Você lembra que naquela viagem o encontrou chorando baixo, perto de uma cachoeira. Foi um abraço forte, o que você o concedeu. Você não perguntou nada, exclamou silêncio, o respeitou até o exato ponto de só o dar o que ele precisava – a certeza de uma proximidade. Você lembra de tocar a pele dele mista de águas, pele delicada, correntezas de suor e água doce, a natureza e o homem cobrindo os mesmos braços e pernas. Você lembra que o abraço fora intenso, que você o pressionou contra seu peito – você lembra da força necessária que fez de propósito para poder sentir os ossos dele contra os seus. De encontrar o queixo na descida do pescoço dele e forjar uma espécie de calma. Ainda depois de tudo isso, você dera a ele um sorriso que nem sabe de onde tirou. Mas agora você retorna a essa sala. Se pergunta se este estoque de sorrisos já acabou, sendo usado sem escrúpulos no tempo. Ele pergunta sobre os amigos de vocês em comum. Você sente o cheiro de apartamento fechado, o tempo apodrecido nesse décimo andar, enquanto que ele: longe. Pergunta de Aléxia. Você trava. Guarda os olhos apontados apenas para lugares vazios Você começa a imaginar aquele tempo. Pensava que hoje seria apenas vocês dois e o presente. Questiona se ele realmente tem direito de mexer nos antigos papéis, que tanto tempo você demorou para organizar. Se sente traído pelo despertar de memórias. Violentado. Mas acaba por lembrar dos dois juntos. De repente, enquanto seu amigo fala, emocionado e cabisbaixo sobre isso que nada mais é um sonho abortado, um choro enterrado vivo, você só os imagina ali, naquele apartamento. Ambos nus. Transando. Naqueles toca-discos, naquela rede da sacada. Seu amigo a fazendo gritar em cima do tapete, ela o chupando no balcão da cozinha. Ambos desesperados em fugir um para o dentro do outro, em foder até o suor secar. Você pensa naquela paixão como energia perdida. Como um passeio no precipício. Aquilo o enoja. Primeiro porque o filho que veio de tantas trepadas até o amanhecer foi uma melancolia com dentes de ferro que nunca largou dos braços dele. Uma tristeza sem cálculos possíveis. Você se sente estranho de imaginar ele de pênis ereto nos dias de ontem com ele te olhando tentando convencer que agora é outro. Enquanto você evoca essa pequena viagem incontrolável e assustadora, perde um pouco da conversa. Durante alguns minutos você não ouviu praticamente nada do que ele disse e absolutamente não faz ideia do que falar agora. Você corta o assunto que nem sabe do que se tratava, pega uma cerveja do congelador. Você está absolutamente dentro apenas de si mesmo desde que chegou aquela casa, louco para  sair, louco para não lembrar do que ele representa, do que ele traz à tona. Mas então o olha. Suavemente diz que sentiu sua falta, enquanto o antigo desconforto de segundos atrás vai indo embora e você sente o que fez o que deveria ser feito -  o que se esperava. E de fato você sentiu isso. Durou pouco aquele adorável esquecimento daqueles anos. Mas agora ele retorna e rompe com esse seu doce passeio lhe dizendo o quanto que é impossível fugir de algo vivo. Passado, porém, vivo.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Tese de Espelho - Tese 1

I


você está feliz. e acha que isso arredonda as curvas do dia e ele gira mais de pressa. sente o suor acomodado dos que tem apreço pelas coisas pequenas. como a sombra da árvore no dilúvio. claro que no fundo você sabe, trata-se de um caso de filantropia consigo mesmo. diferente a dar trocados para mães desesperadas nas sinaleiras, de onde sai com o nariz apitando ao céu missão cumprida, esse tipo de atividade é o mesmo que dar água as plantas do apartamento quando murchas e amareladas. Trata-se de um caso típico do "pelo menos, ninguém pode dizer que não tentei". Contudo, mesmo praticando essa pequena enganação, roubando do seu próprio bolso para sustentar um sorriso frouxo, você ainda sustenta-se leve. vai a lancheria. come sem fome um par de pães de queijo. a sensação do forno quente ainda pode ser sentido no primeiro salgado a ser devorado, e no rastro de um cometa das causas imediatas você retorna a uma sensação antiga. quando jovem, foi a Belém do Pará para uma missão da ong de seu pai. Lá, beijou uma menina. Ela não era muito bonita, porém, fervorosa, quente. Você a tomou com vontade. Deitou em sua cama como se fosse o jardim que os labirintos prometem em seu desejado interior. Você lixou sua língua em sua boca com se fosse uma causa nobre, uma missão a ser desempenhada. Depois a olhou piedosamente. Quando você foi embora, já não sentindo mais aquilo tudo, você sorriu e a menina chorou. No seu primeiro beijo você estava sozinho, mas isso você não lembra hoje. Apenas da temperatura da energia em trânsito. Você lembra do calor. Esse fiapo de memória o trouxe uma ambiência barroca e delicada. Agora você está mais feliz ainda. Sabe que viveu, essa lembrança afirma isso. Uma pequena excitação aparece de repente como uma formiga que do nada aparece dentro de sua camisa. Caminhando pelo pescoço agora. Você sente falta de pisar fundo no dia e marca-lo com uma feição sua. uma marca de mão, uma forma de pé. você sente falta de surprender-se. De chegar aos amigos e poder contar algo que os faça ficar com silêncio, um silêncio que se instaura quando a inveja trabalha. Você poderia ligar para Clara agora. Quem sabe, ir a sua cobertura. Levaria um vinho, um respeitoso, recado direto. Mas ela diria a ti que não precisa de bebida para dormir contigo e te agarraria antes de buscar duas taças. Na verdade ela te agarraria, mas só depois de completar "aliás, não preciso de nada, só de você". Então fariam amor de luzes acesas dentro do quarto e dos olhos. Mas então você lembra que Clara é uma pessoa muito direta em suas vontades. Que quando decide encontrá-lo, manda uma mensagem com apenas uma palavra e um ponto de interrogação, do tipo, "hoje?". Lembra que tudo que ela tem guardado para te dar são pontos de interrogação, e pior, sempre com a mesma pergunta. Você resonde à altura, com um simples "s", que nessa linguagem escravista dos meios digitais quer dizer "sim". Então você dirige até seu apartamento onde ela provavelmente está terminando um cigarro de maconha, sozinha. Cigarro que ela nem oferece a você. Vocês transam por meia hora e é mais fácil deduzir a velocidade do vento pelo barulho desse na janela do que a respiração de ambos. Ela pede que você vá embora antes de tomar um copo de água, e você, obedece enquanto escuta seu estojo de maquiagem sendo aberto, afinal, a noite apenas começou.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012


Minha prima disse - enquanto uma lágrima armava-se no encontro de suas pálpebras rochosas e branquiadas – a coisa mais importante no mundo que você pode dar para alguém são seus ouvidos. Ouça com os olhos, a pele, o corpo todo, mas tenha cuidado com os seus ouvidos. Há de se ter muita delicadeza no caminho de volta.

Não ao era ela muito esperta de cativar crenças com atitudes similares a essa, mas acreditava muito no amor que se faz a convite, a empréstimo  a concessão no de outra pessoa. Eu já não tinha idade para seriedades, mal escutava o desaforo de seu rosto e garganta, segurando aquele pastel de queijo, (onde até o momento eu procurava o queijo extinto talvez até antes do surgimento do pastel), com os pequenos dedos marcados com o relevo das primeira aulas de violão.

"Me prometa que entendeu" - disse sua forma de me olhar.

Cercado por aqueles olhos tive que me decidir.

Escolhi ser o direito, o olho direito que já secara e não dava sinais de seu passado.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

gosto de castanhas


Começou enquanto eu buscava algumas pastas para arquivar documentos que tinham recentemente chegado ao Museu, processos antigos, do tempo de Duque de Caxias. Desci para a salinha azul, um pequeno amontoado de centímetros onde guardamos material de escritório, e ao abrir uma das gavetas do armário me deparei com um seguimento enorme de lápis novos, perfeitamente apontados e prontos para o uso. Não resisti em pegar um deles, mas antes pensei em  alguma rápida estratégia para não machucar algum dedo com o perigo afiado desses objetos novos.

Foi nesse momento que me veio então. Meus olhos levitaram-se, e por segundos, já sentia em mim um cheiro de laranjeiras. Eu havia me transportado para um local aprazível, inclinado ao magnífico. Parecia um parque de uma grande cidade,  mas não era nenhuma das quais eu conhecia aqui do sul. As árvores tinham troncos altos e grossos, limitavam a presença do sol redesenhando os contornos de sua luz. Eu me sentia protegido e de certa forma triunfante, como alguma conquista pessoal tivesse me levado para li. Havia farelos de castanhas em minha boca, e eu lutava  para engoli-las decentemente. Dois meninos jogavam cartas em minha frente, enquanto isso, dois cães observavam o jogo com um certo interesse. O vento batia quente em meu ombro, enquanto eu virava-me toda hora em busca de um convidado que encontrava-se atrasado. Apesar de uma certa angústia que amplifica o grito dos dedos, havia algo de paz que me assegurava um certo descansar.

Logo voltei dessa paisagem. No retornar, percebi que o  lápis que  eu provavelmente escolhi com um delineado filtro de gosto estava no chão. A esbelta ponta havia perdido um pouco de seu poder, rachada, deixou resquícios em forma de farelos de grafite no carpete. Ficara lá, dessa forma mesmo, desenhando um tipo abrupto de choque ou queda, registro do momento em que me veio tal lembrança.

Desde então, essa memória tem me acompanhado nos trens e trilhos e não faço ideia qual seja sua origem. No início, não dei muita atenção ao fato. Há dias que havia em meu pulso uma fadiga larga, que amassava para o abate meu pequeno corpo, o dando sono e cansaço. A rotina abatida de meu trabalho tinha o poder de dar flechas certeiras aos ponteiros do relógio. Por isso, julguei que poderia ser um estado de vigília, um princípio de sono, ou seja, uma manifestação anacrônica do oceano enigmático que o inconsciente sustenta. Porém, me mantive curioso. No mesmo dia havia de ter de encontrar Oscar. Enquanto eu o esperava na charutaria esquisita na qual ele mesmo havia escolhido, tintilou novamente a recordação daquela lembrança. Horas depois, quando de pijama me ofereci ao sono, desviei a culpa de minha insônia, antes devida ao pássaro irritante da vizinha de cima, para o mistério daquela lembrança. Não conseguia parar de pensar de onde tinha vindo aquilo.

Quando dormi, finalmente, sonhei com a antiga casa de Bagé. As brigas de mamãe e vovó, que estranhavam-se por vários motivos sendo o principal a insistência de minha vó por dar passe livre aos animais campeiros na sala de estar. Quando dirigiam-se a mim, ambas adotavam maneiras pessoais porém igualmente aconchegantes de carinho, e aqueles tempos de infância constam como os melhores quando a questão é sossego. Talvez pudesse ter algo a ver com esse tempo pensei. Algo que, quando menino na estância, vivi, ficou guardado e só despertou recentemente de meu caderno de anotações. Era uma solução à altura, mas logo a descartei, pois não havia parque como aquele na cidade. Terminei meu salgado, e voltei ao trabalho no museu.

Passou-se  meia semana. Eu já  havia eliminado todas as possibilidades prováveis em relação a memórias da juventude até agora. A viagem para o Uruguai ou o acampamento nas Missões, nada fechava em tantos elementos. Percebi então que eu poderia estar sendo um tolo. Talvez, tal memória pudesse ter sido de algum filme que eu assisti ou algum livro, que por deslize, assimilei como sendo uma narração pessoal, quando na verdade, nem a própria ficção da lembrança poderia ter sido por mim elaborada. Os últimos filmes que assisti tinham sido, na maioria, filmes frios. Um documentário sobre as florestas da Sibéria, uma obra de Ozon,e, novamente uma trilogia de Sukurov que nem lembro-me direito. Quanto aos livros, lia e muito para o meu mestrado em História Contemporânea, e Woolf e Prado júnior eram caminhos descartáveis para a solução chaveada. Ainda assim, depois de tanto silêncio devotado para tentar concentrar-se nessas possibilidades, e análise apuradas das obras, desbanquei o queixo com um suspiro na fronteira de ser classificado como um angustiante grito.

Não acredito na crença que discursa sobre vidas passadas. Então nem me dispensei para pensar sobre isso. O que mais me incomodava é que eu sabia que possivelmente essa turbulência agrediria minha rotina para sempre. A tal imagem que me elevava a um tipo perto da paz poderia levar a combustão minha paciência, tornando-se uma pedra em meu sapato até eu estando em completa nudez. Não queria em mim retrato de agonia semelhante a essa descrita para sempre.

Eu precisava de novas pistas, porém, havia uma barreira. Fazia tempo que não me vinha a lembrança, e esse tempo era uma brecha na qual o esquecimento fazia de palco para aparecer. A distância da imagem me fazia perder os detalhes, tornar a recordação borrada,  e eu não podia confiar nos elementos instáveis que me viam a mente quando pensava na memória. Ela  esfacelava-se, e ficava em minha apenas a sensação do estar lá. As folhas daquelas árvores apodreciam e aqueles meninos envelheciam e iam ao pó. Precisava, portanto, esperar o momento que a dita memória decidisse me visitar. Aguardar o seu engatilhar atento.
Em uma sexta-feira a noite, enfim, me veio. Solitariamente, em meio a alguns grupos de pessoas que alto falavam bebiam e fumavam, enquanto pensava na possibilidade de não aparecer para trabalhar na semana que estava por vir, tive novamente renascida aquela sensação de proteção e paz. Aquela agonia da dúvida perfuradora sumiu, e enquanto isso, eu apenas aproveitava aquela adocicada paisagem. Uma sensação nobre de quem sabe que algo bom está por vir, não importa que as pegadas do desastre sejam grandes e apontem para o bairro de dormir. Enquanto tudo acontecia, falhei em tentar captar os mínimos detalhes que poderiam ser pistas preciosas para posteriormente pensar na resolução do mistério. Não me atrevi a ter atenção. Apenas deixei o tempo passar em mim dando o meu tempo como veículo para que a recordação pudesse existir. Novamente, quanto passou o espetáculo, retornei a clausura de meus pensamentos. Irritava-me não ter poder sobre minha própria mente, que dirá, de meu destino. Se esqueci daquilo, imagina o quanto do meu vivido pode ter desaparecido? Um esforço em vão, um sacrifício de passado para que um futuro (que não se mostrava por enquanto dos mais merecidos) pudesse tranquilamente surgir. Pensei em voltar para a cultura dos diários que tive enquanto adolescente, mas me pareceu uma besteira. Talvez esquecer seja o melhor que possamos fazer para conservar o róseo de nossos rostos pensei, enquanto sentiam-me uma vítima da enganação propiciada pela demência estoneante de minha mente. Talvez o custo da idade fosse não lembrar das coisas e assim não poder voltar .

Logo logo, minha dúvida começou a mudar de foco. Cada vez menos me importava onde eu estava, mas sim, saber quem era a pessoa que eu esperava se tornou a dúvida principal. Talvez essa pessoa me ajudasse a saber quando isso ocorreu, e me contaria quando, afinal, que tudo se deu, e talvez ainda, me de um motivo para saber porque eu não recordo facilmente essa memória.Ou simplesmente, saber quem era me faria lembrar na hora de todo o resto. Ainda, de certa forma, a tal pessoa era responsável pelo filete de agonia que quebrava a bela sensação da lembrança, a única centelha de incomodo daquilo tudo. Precisava saber o final daquela tarde.

No sábado seguinte, vivi momentos de fobia. Senti-me um velho por não poder recordar minhas próprias criações, rir e orgulhar-se de minhas próprias atitudes que transpuseram-se ao eterno através do esquecimento. Há anos sentia a idade rondando meus freios, mas nunca quis assumir tal condição. Talvez fosse hora.

 Uma coisa era certa. Com absoluta certeza aquela lembrança não tratava-se de uma invenção. Devorei Freud e seus apóstolos, mas o mais importante, me mirei certeiro. Não era bobo ou criativo o suficiente para gerar tal arapuca.

Domingo de manhã resolvi passear. Há um sorvete artesanal muito bom perto de um ótimo sebo no centro, no qual costumo ir. Na situação estranha, entre colheradas de melado com creme gelado e tentativas de esmaecer a mente nos versos de Juan Ramón, que tudo teve um fim. Entre uma pálpebra confusa e outra, acordo de algum poema com a voz inconfundível de Antônia. Ela está posta ao meu lado, e já já puxa uma cadeira para sentar-se. Tinha me esquecido que ela morava ali por perto. Com todo egoísmo de meus pensamentos, que só dedicados aaquele acontecido, nem passou o fato por minha cabeça, se não poderia tê-la até convidado para um chá e dividir com ela o atual drama. Antônia tem um rosto cumprido e cuida-se de um jeito estranho, usando utensílios de beleza adversos, porém, conservando um ar cansado nas rotas de seu rosto, mais derrotado que o normal para alguém de sua idade, dona de uma certa beleza. Ultimamente começamos novamente a nos afeiçoar de forma amiga um pelo outro. Nos encontrávamos toda a semana, com exceção das últimas pois ela estava em São Paulo a trabalho. É uma mulher inteligente com quem as horas nunca são perdidas.

Não resisti a informá-la da minha situação. Já tinha tentado a explicar anteriormente para Oscar, mas sua sobrancelha tinha ficado demais inquieta com meu relato. Jurando ter sido uma de minhas frescuras mandou  eu esquecer e lembrar de alguns prazeres da vida que estão longe da esquina do chatear-se com tudo. Antes dela por-se a contar das ocorrências vividas em São Paulo (detesto ouvir falatórios e narrações de viagem), a interrompi de forma brusca. Quieta, a mulher ouviu meu relato até a última palavra. Surpreso com a falta de interrupção pela parte dela, tentei usar tantos detalhes que no final tinha esgotado o que dizer, mesmo que tenha sentido que seus olhos ansiavam por mais informações, me emudeci.

Depois de um tempo, visivelmente atingida, Antônia deixou a confortabilidade da cadeira e levantou-se para sinalizar uma fuga ou abandono. Tristemente decepcionada, deu-me para meu mistério uma data e um local:

 “ Agosto de 82, Praça do Reino”

Continuei confuso, e pretendendo entender de vez aquilo tudo.

“Esperei você até perto da noite, mas você não veio, muito menos avisou. Fiquei lá sozinha, a  ver o dia morrer, ”

Antônia foi embora de forma silenciosa, talvez sem pensar em ver-me novamente. Naquele momento uma leve felicidade me aportou. Acalmei-me como  nunca antes, enquanto os nervos aterrissavam da tontura em um acamado descanso. “Nada escapa a essa mente que nada esquece”, pensei. Minha idade estava absolvida. Posso dizer que encontrava-me em paz.