Procuro pelo cantor. As ruas negam sua função. Me atrapalham.
Enchem as pernas de cascalhos antigo. Contudo, sou branca que nem uma
recém-nascida e não desisto. Continuo as peripécias infinitas para a lógica.
Vês como estou mudada meu bem? Hoje aceito no estômago até o que não é
literatura. E faço barca dos olhos onde a luz falta. Aprendi muitas coisas nos
desprazeres, como por exemplo, nos vemos inteiros apenas nos pedaços. No
pensamento estirado, nos dedos amputados. Não concorda benzinho? Sei que falo
solitariamente. E que essa incrível produção de disfunção da língua escrita não
me deposita um centavo ou me garante um amor. Sei os caminhos exatos para me
desfalcar. Nisso sou expert. Já ganhei
um alambique e eternas dores para cabeça brincando de engenheiro de
mentira. Mas agora, depois do falso telhado e todas as tentativas na arma de
brinquedo, ano por aí. Vira e mexe rebolo nas escrituras. Falo mal do gramado
alheio. Gasto tempo no escuro, nas conversas cíclicas, nas falsas promessas e
enganos mútuos. A pegadinha é que emagreci. E bastante. Foi-se foi a fome, mas
o peso ficou, a sufocar os animais do rosto. Podes me ver por aí sempre quando
ousares comprar teu próprio mal em uma banquinha de revista, em uma conversa
arrependida. Em um vai-vém nostálgicos. E assim se vão as semanas. Os amigos
envelhecem por dentro. E daqui ninguém me convence que sou jovem. Conquisto meu
próprio rosto durante o banho (o que dele sobrou). Sei dos buracos
irredutíveis, da mata silvestre que cresce nos descuidos da oleosa pele. Tenho
aquele corpo do tipo das possibilidades reduzidas. Das apostas cansadas. Dos
remendos que desistem de tentar de novo. Do elástico cansado que entrega-se. Há
uma guerra para ser ganha e nenhuma esperança nos pentes das armas. A
violência, minto, não gosto. Observo o temporal que nos destelha e faz sair
frases rudes, adeuses malcriados e sedes selvagens. Só observo. Enquanto isso,
sigo o caminho do corpo e os ossos de sempre me moldam. Nessa casa fico,
reciosa e anônima. Faço minha concheira. Estabeleço laços espirituais pelo jogo
de forca. E se me obedeço, é deslize. Hoje me vi verdade: me pintei falsa suja
louca para merecer um lugar na dor. As justificativas riem fofoqueiras de
longe, não me dão a mínima. Sem motivo
mancho o rosto só por acordar, rotina de se esquecer.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Tese de Espelho - Tese 5
Você está na cozinha dele. Agora você procura entender
coisas, muitas coisas, dentre elas o porquê daquela coleção de pimentas
(vermelhas, pretas, americana, branca, chilli) -
nomes pronunciadas com entonações de carinho semelhante a falas sobre pais e filhos.
Aliás, quando foi que investigar as discrepâncias, sabores e anatomias das
pimentas começou a ser tão assim importante para ele? Silêncio. Você o olha imaginando
como o perdeu. Quando foi o momento da ruptura, da explosão, do blecaute. Agora
você esconde a mão na barba para demonstrar interesse alheio, uma estratégia estranha. Ele fala das Filipinas.
Vocês estão na sala. Ele te mostra fotografias. Numa delas nativos da tribo Tagbanua pousam ao lado dele. Um dos locais, o mais alto que os demais, usa um chapéu
que você o deu. Que você o deu. Era fevereiro de um ano que começava e você o
presenteou com aquele panamá legítimo dizendo “para que o sol só te traga boas coisas”. Você pensa
como que do outro lado do mundo alguém usa seu ex-chapéu. Como foi que a sua
memória viajou tão longe. Mas agora você se dedica a raciocinar de forma preocupada aonde estava
enquanto as Filipinas e todo o Mar de Sulu era terreno de caça de futuro para ele.
Enquanto que ele corria atrás de herbívoros exóticos, de exóticas dançarinas
locais, de toda a biologia que antes nunca tivera dado tanta atenção, você
fazia o que mesmo? Lavava a louça ao som de T-Bonne Walker se achando o centro
da festa do mundo, procurava uma remuneração decente em anúncios na internet,
usava sempre as mesmas desculpas para não sorrir. De tal modo que quando ele
chegou de viagem você temeu perguntas do tipo “e você como está”. Você temia
dizer que aqui o tempo não passou apenas se fez de morto, que aqui só a espera
lançou seu tapete vermelho para qualquer surpresa que não compareceu ao
encontro, que aqui você continua o mesmo, apensar de tudo – o mesmo. Ele está
feliz e decide te apresentar uma nova bebida que trouxe de Mali. Parece
estar disposto a fazer tudo para te convencer que para alguém no planeta você foi ausência. Que
você importa. Te fazer sofrido é uma maneira de te elogiar. Ele serve a vocês dois. Você está cansado. Já havia começado a
beber cedo, no meio da tarde, entre uma justificativa e outra – ambas furadas.
Ele só fala sobre o que você não conhece. Talvez ache que esse
desconhecimento faça bem a você. Te tira do sofá da realidade. Refresca. Talvez ele só queira te convencer que a
distância fez bem para todos. Ele está bonito, está tão bonito quanto o dia que
foi embora. Ele já foi embora tantas vezes que você sempre o olha como uma
partida que ainda não aconteceu. Talvez seja isto que o faça bonito. Ele tem o tipo de fraqueza que você gostaria
de ter, a de não se importar, aquela que faz abrir os olhos ser ao mesmo tempo uma fuga. Você o vê com convicção. Mas não consegue se
concentrar. Você lembra de uma viagem que fizeram. Um sítio. Um final de semana.
Vocês supostamente dividiriam o mesmo quarto. As malas de vocês dois, juntas lá
estavam, mas ele nunca apareceu para dormir. Sozinho. Você lembra que naquela viagem o
encontrou chorando baixo, perto de uma cachoeira. Foi um abraço forte, o que
você o concedeu. Você não perguntou nada, exclamou silêncio, o respeitou até o exato
ponto de só o dar o que ele precisava – a certeza de uma proximidade. Você
lembra de tocar a pele dele mista de águas, pele delicada, correntezas de suor
e água doce, a natureza e o homem cobrindo os mesmos braços e pernas. Você
lembra que o abraço fora intenso, que você o pressionou contra seu peito – você
lembra da força necessária que fez de propósito para poder sentir os ossos dele contra os seus. De
encontrar o queixo na descida do pescoço dele e forjar uma espécie de calma.
Ainda depois de tudo isso, você dera a ele um sorriso que nem sabe de onde
tirou. Mas agora você retorna a essa sala. Se pergunta se este estoque de sorrisos já acabou, sendo usado sem escrúpulos no tempo. Ele pergunta sobre os amigos de
vocês em comum. Você sente o cheiro de apartamento fechado, o tempo apodrecido
nesse décimo andar, enquanto que ele: longe. Pergunta de Aléxia. Você
trava. Guarda os olhos apontados apenas para lugares vazios Você começa a
imaginar aquele tempo. Pensava que hoje seria apenas vocês dois e o presente. Questiona se ele realmente tem direito de mexer nos antigos papéis, que tanto tempo você demorou para organizar. Se sente traído pelo despertar de memórias. Violentado. Mas acaba por lembrar dos dois juntos. De repente, enquanto seu amigo fala,
emocionado e cabisbaixo sobre isso que nada mais é um sonho abortado, um choro
enterrado vivo, você só os imagina ali, naquele apartamento. Ambos nus. Transando.
Naqueles toca-discos, naquela rede da sacada. Seu amigo a fazendo gritar em
cima do tapete, ela o chupando no balcão da cozinha. Ambos desesperados em
fugir um para o dentro do outro, em foder até o suor secar. Você pensa naquela paixão como energia perdida. Como um passeio no precipício. Aquilo o enoja. Primeiro porque o filho que veio de tantas trepadas até o amanhecer foi uma melancolia com dentes de ferro que nunca largou dos braços dele. Uma tristeza sem cálculos possíveis. Você se sente estranho de imaginar ele de pênis ereto nos dias de ontem com ele te olhando tentando convencer que agora é outro. Enquanto você evoca
essa pequena viagem incontrolável e assustadora, perde um pouco da conversa.
Durante alguns minutos você não ouviu praticamente nada do que ele disse e absolutamente
não faz ideia do que falar agora. Você corta o assunto que nem sabe do que se
tratava, pega uma cerveja do congelador. Você está absolutamente dentro apenas
de si mesmo desde que chegou aquela casa, louco para sair, louco para não lembrar do que ele
representa, do que ele traz à tona. Mas então o olha. Suavemente diz que sentiu sua
falta, enquanto o antigo desconforto de segundos atrás vai indo embora e você
sente o que fez o que deveria ser feito -
o que se esperava. E de fato você sentiu isso. Durou pouco aquele adorável esquecimento daqueles anos. Mas agora ele retorna e rompe com esse seu doce passeio lhe dizendo o quanto que é impossível fugir de algo vivo. Passado, porém, vivo.
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Tese de Espelho - Tese 1
I
você está feliz. e acha que isso arredonda as curvas do dia e ele gira mais de pressa. sente o suor acomodado dos que tem apreço pelas coisas pequenas. como a sombra da árvore no dilúvio. claro que no fundo você sabe, trata-se de um caso de filantropia consigo mesmo. diferente a dar trocados para mães desesperadas nas sinaleiras, de onde sai com o nariz apitando ao céu missão cumprida, esse tipo de atividade é o mesmo que dar água as plantas do apartamento quando murchas e amareladas. Trata-se de um caso típico do "pelo menos, ninguém pode dizer que não tentei". Contudo, mesmo praticando essa pequena enganação, roubando do seu próprio bolso para sustentar um sorriso frouxo, você ainda sustenta-se leve. vai a lancheria. come sem fome um par de pães de queijo. a sensação do forno quente ainda pode ser sentido no primeiro salgado a ser devorado, e no rastro de um cometa das causas imediatas você retorna a uma sensação antiga. quando jovem, foi a Belém do Pará para uma missão da ong de seu pai. Lá, beijou uma menina. Ela não era muito bonita, porém, fervorosa, quente. Você a tomou com vontade. Deitou em sua cama como se fosse o jardim que os labirintos prometem em seu desejado interior. Você lixou sua língua em sua boca com se fosse uma causa nobre, uma missão a ser desempenhada. Depois a olhou piedosamente. Quando você foi embora, já não sentindo mais aquilo tudo, você sorriu e a menina chorou. No seu primeiro beijo você estava sozinho, mas isso você não lembra hoje. Apenas da temperatura da energia em trânsito. Você lembra do calor. Esse fiapo de memória o trouxe uma ambiência barroca e delicada. Agora você está mais feliz ainda. Sabe que viveu, essa lembrança afirma isso. Uma pequena excitação aparece de repente como uma formiga que do nada aparece dentro de sua camisa. Caminhando pelo pescoço agora. Você sente falta de pisar fundo no dia e marca-lo com uma feição sua. uma marca de mão, uma forma de pé. você sente falta de surprender-se. De chegar aos amigos e poder contar algo que os faça ficar com silêncio, um silêncio que se instaura quando a inveja trabalha. Você poderia ligar para Clara agora. Quem sabe, ir a sua cobertura. Levaria um vinho, um respeitoso, recado direto. Mas ela diria a ti que não precisa de bebida para dormir contigo e te agarraria antes de buscar duas taças. Na verdade ela te agarraria, mas só depois de completar "aliás, não preciso de nada, só de você". Então fariam amor de luzes acesas dentro do quarto e dos olhos. Mas então você lembra que Clara é uma pessoa muito direta em suas vontades. Que quando decide encontrá-lo, manda uma mensagem com apenas uma palavra e um ponto de interrogação, do tipo, "hoje?". Lembra que tudo que ela tem guardado para te dar são pontos de interrogação, e pior, sempre com a mesma pergunta. Você resonde à altura, com um simples "s", que nessa linguagem escravista dos meios digitais quer dizer "sim". Então você dirige até seu apartamento onde ela provavelmente está terminando um cigarro de maconha, sozinha. Cigarro que ela nem oferece a você. Vocês transam por meia hora e é mais fácil deduzir a velocidade do vento pelo barulho desse na janela do que a respiração de ambos. Ela pede que você vá embora antes de tomar um copo de água, e você, obedece enquanto escuta seu estojo de maquiagem sendo aberto, afinal, a noite apenas começou.
você está feliz. e acha que isso arredonda as curvas do dia e ele gira mais de pressa. sente o suor acomodado dos que tem apreço pelas coisas pequenas. como a sombra da árvore no dilúvio. claro que no fundo você sabe, trata-se de um caso de filantropia consigo mesmo. diferente a dar trocados para mães desesperadas nas sinaleiras, de onde sai com o nariz apitando ao céu missão cumprida, esse tipo de atividade é o mesmo que dar água as plantas do apartamento quando murchas e amareladas. Trata-se de um caso típico do "pelo menos, ninguém pode dizer que não tentei". Contudo, mesmo praticando essa pequena enganação, roubando do seu próprio bolso para sustentar um sorriso frouxo, você ainda sustenta-se leve. vai a lancheria. come sem fome um par de pães de queijo. a sensação do forno quente ainda pode ser sentido no primeiro salgado a ser devorado, e no rastro de um cometa das causas imediatas você retorna a uma sensação antiga. quando jovem, foi a Belém do Pará para uma missão da ong de seu pai. Lá, beijou uma menina. Ela não era muito bonita, porém, fervorosa, quente. Você a tomou com vontade. Deitou em sua cama como se fosse o jardim que os labirintos prometem em seu desejado interior. Você lixou sua língua em sua boca com se fosse uma causa nobre, uma missão a ser desempenhada. Depois a olhou piedosamente. Quando você foi embora, já não sentindo mais aquilo tudo, você sorriu e a menina chorou. No seu primeiro beijo você estava sozinho, mas isso você não lembra hoje. Apenas da temperatura da energia em trânsito. Você lembra do calor. Esse fiapo de memória o trouxe uma ambiência barroca e delicada. Agora você está mais feliz ainda. Sabe que viveu, essa lembrança afirma isso. Uma pequena excitação aparece de repente como uma formiga que do nada aparece dentro de sua camisa. Caminhando pelo pescoço agora. Você sente falta de pisar fundo no dia e marca-lo com uma feição sua. uma marca de mão, uma forma de pé. você sente falta de surprender-se. De chegar aos amigos e poder contar algo que os faça ficar com silêncio, um silêncio que se instaura quando a inveja trabalha. Você poderia ligar para Clara agora. Quem sabe, ir a sua cobertura. Levaria um vinho, um respeitoso, recado direto. Mas ela diria a ti que não precisa de bebida para dormir contigo e te agarraria antes de buscar duas taças. Na verdade ela te agarraria, mas só depois de completar "aliás, não preciso de nada, só de você". Então fariam amor de luzes acesas dentro do quarto e dos olhos. Mas então você lembra que Clara é uma pessoa muito direta em suas vontades. Que quando decide encontrá-lo, manda uma mensagem com apenas uma palavra e um ponto de interrogação, do tipo, "hoje?". Lembra que tudo que ela tem guardado para te dar são pontos de interrogação, e pior, sempre com a mesma pergunta. Você resonde à altura, com um simples "s", que nessa linguagem escravista dos meios digitais quer dizer "sim". Então você dirige até seu apartamento onde ela provavelmente está terminando um cigarro de maconha, sozinha. Cigarro que ela nem oferece a você. Vocês transam por meia hora e é mais fácil deduzir a velocidade do vento pelo barulho desse na janela do que a respiração de ambos. Ela pede que você vá embora antes de tomar um copo de água, e você, obedece enquanto escuta seu estojo de maquiagem sendo aberto, afinal, a noite apenas começou.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
Minha prima disse - enquanto uma lágrima armava-se no encontro de suas pálpebras rochosas e branquiadas – a coisa mais importante no mundo que você pode dar para alguém são seus ouvidos. Ouça com os olhos, a pele, o corpo todo, mas tenha cuidado com os seus ouvidos. Há de se ter muita delicadeza no caminho de volta.
Não ao era ela muito esperta de cativar crenças com atitudes similares a essa, mas acreditava muito no amor que se faz a convite, a empréstimo a concessão no de outra pessoa. Eu já não tinha idade para seriedades, mal escutava o desaforo de seu rosto e garganta, segurando aquele pastel de queijo, (onde até o momento eu procurava o queijo extinto talvez até antes do surgimento do pastel), com os pequenos dedos marcados com o relevo das primeira aulas de violão.
"Me prometa que entendeu" - disse sua forma de me olhar.
Cercado por aqueles olhos tive que me decidir.
Escolhi ser o direito, o olho direito que já secara e não dava sinais de seu passado.
"Me prometa que entendeu" - disse sua forma de me olhar.
Cercado por aqueles olhos tive que me decidir.
Escolhi ser o direito, o olho direito que já secara e não dava sinais de seu passado.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
gosto de castanhas
Começou enquanto eu buscava algumas pastas para arquivar
documentos que tinham recentemente chegado ao Museu, processos antigos, do tempo de Duque de Caxias. Desci para a salinha azul, um pequeno
amontoado de centímetros onde guardamos material de escritório, e ao abrir uma
das gavetas do armário me deparei com um seguimento enorme de lápis novos,
perfeitamente apontados e prontos para o uso. Não resisti em pegar um deles,
mas antes pensei em alguma rápida
estratégia para não machucar algum dedo com o perigo afiado desses objetos
novos.
Foi nesse momento que me veio então. Meus olhos
levitaram-se, e por segundos, já sentia em mim um cheiro de laranjeiras. Eu
havia me transportado para um local aprazível, inclinado ao magnífico. Parecia
um parque de uma grande cidade, mas não
era nenhuma das quais eu conhecia aqui do sul. As árvores tinham troncos altos
e grossos, limitavam a presença do sol redesenhando os contornos de sua luz. Eu
me sentia protegido e de certa forma triunfante, como alguma conquista pessoal
tivesse me levado para li. Havia farelos de castanhas em minha boca, e eu
lutava para engoli-las decentemente.
Dois meninos jogavam cartas em minha frente, enquanto isso, dois cães
observavam o jogo com um certo interesse. O vento batia quente em meu ombro,
enquanto eu virava-me toda hora em busca de um convidado que encontrava-se
atrasado. Apesar de uma certa angústia que amplifica o grito dos dedos, havia
algo de paz que me assegurava um certo descansar.
Logo voltei dessa paisagem. No retornar, percebi que o lápis que
eu provavelmente escolhi com um delineado filtro de gosto estava no
chão. A esbelta ponta havia perdido um pouco de seu poder, rachada, deixou
resquícios em forma de farelos de grafite no carpete. Ficara lá, dessa forma
mesmo, desenhando um tipo abrupto de choque ou queda, registro do momento em
que me veio tal lembrança.
Desde então, essa memória tem me acompanhado nos trens e
trilhos e não faço ideia qual seja sua origem. No início, não dei muita atenção
ao fato. Há dias que havia em meu pulso uma fadiga larga, que amassava para o
abate meu pequeno corpo, o dando sono e cansaço. A rotina abatida de meu
trabalho tinha o poder de dar flechas certeiras aos ponteiros do relógio. Por
isso, julguei que poderia ser um estado de vigília, um princípio de sono, ou
seja, uma manifestação anacrônica do oceano enigmático que o inconsciente
sustenta. Porém, me mantive curioso. No mesmo dia havia de ter de encontrar
Oscar. Enquanto eu o esperava na charutaria esquisita na qual ele mesmo havia
escolhido, tintilou novamente a recordação daquela lembrança. Horas depois,
quando de pijama me ofereci ao sono, desviei a culpa de minha insônia, antes
devida ao pássaro irritante da vizinha de cima, para o mistério daquela
lembrança. Não conseguia parar de pensar de onde tinha vindo aquilo.
Quando dormi, finalmente, sonhei com a antiga casa de Bagé.
As brigas de mamãe e vovó, que estranhavam-se por vários motivos sendo o principal
a insistência de minha vó por dar passe livre aos animais campeiros na sala de
estar. Quando dirigiam-se a mim, ambas adotavam maneiras pessoais porém
igualmente aconchegantes de carinho, e aqueles tempos de infância constam como
os melhores quando a questão é sossego. Talvez pudesse ter algo a ver com esse
tempo pensei. Algo que, quando menino na estância, vivi, ficou guardado e só
despertou recentemente de meu caderno de anotações. Era uma solução à altura,
mas logo a descartei, pois não havia parque como aquele na cidade. Terminei meu
salgado, e voltei ao trabalho no museu.
Passou-se meia
semana. Eu já havia eliminado todas as
possibilidades prováveis em relação a memórias da juventude até agora. A viagem
para o Uruguai ou o acampamento nas Missões, nada fechava em tantos elementos.
Percebi então que eu poderia estar sendo um tolo. Talvez, tal memória pudesse
ter sido de algum filme que eu assisti ou algum livro, que por deslize,
assimilei como sendo uma narração pessoal, quando na verdade, nem a própria
ficção da lembrança poderia ter sido por mim elaborada. Os últimos filmes que assisti
tinham sido, na maioria, filmes frios. Um documentário sobre as florestas da
Sibéria, uma obra de Ozon,e, novamente uma trilogia de Sukurov que nem
lembro-me direito. Quanto aos livros, lia e muito para o meu mestrado em
História Contemporânea, e Woolf e Prado júnior eram caminhos descartáveis para
a solução chaveada. Ainda assim, depois de tanto silêncio devotado para tentar
concentrar-se nessas possibilidades, e análise apuradas das obras, desbanquei o
queixo com um suspiro na fronteira de ser classificado como um angustiante
grito.
Não acredito na crença que discursa sobre vidas passadas.
Então nem me dispensei para pensar sobre isso. O que mais me incomodava é que
eu sabia que possivelmente essa turbulência agrediria minha rotina para sempre.
A tal imagem que me elevava a um tipo perto da paz poderia levar a combustão
minha paciência, tornando-se uma pedra em meu sapato até eu estando em completa
nudez. Não queria em mim retrato de agonia semelhante a essa descrita para
sempre.
Eu precisava de novas pistas, porém, havia uma barreira.
Fazia tempo que não me vinha a lembrança, e esse tempo era uma brecha na qual o
esquecimento fazia de palco para aparecer. A distância da imagem me fazia
perder os detalhes, tornar a recordação borrada, e eu não podia confiar nos elementos
instáveis que me viam a mente quando pensava na memória. Ela esfacelava-se, e ficava em minha apenas a
sensação do estar lá. As folhas daquelas árvores apodreciam e aqueles meninos
envelheciam e iam ao pó. Precisava, portanto, esperar o momento que a dita
memória decidisse me visitar. Aguardar o seu engatilhar atento.
Em uma sexta-feira a noite, enfim, me veio. Solitariamente,
em meio a alguns grupos de pessoas que alto falavam bebiam e fumavam, enquanto
pensava na possibilidade de não aparecer para trabalhar na semana que estava
por vir, tive novamente renascida aquela sensação de proteção e paz. Aquela
agonia da dúvida perfuradora sumiu, e enquanto isso, eu apenas aproveitava
aquela adocicada paisagem. Uma sensação nobre de quem sabe que algo bom está
por vir, não importa que as pegadas do desastre sejam grandes e apontem para o
bairro de dormir. Enquanto tudo acontecia, falhei em tentar captar os mínimos detalhes
que poderiam ser pistas preciosas para posteriormente pensar na resolução do
mistério. Não me atrevi a ter atenção. Apenas deixei o tempo passar em mim
dando o meu tempo como veículo para que a recordação pudesse existir.
Novamente, quanto passou o espetáculo, retornei a clausura de meus pensamentos.
Irritava-me não ter poder sobre minha própria mente, que dirá, de meu destino.
Se esqueci daquilo, imagina o quanto do meu vivido pode ter desaparecido? Um
esforço em vão, um sacrifício de passado para que um futuro (que não se
mostrava por enquanto dos mais merecidos) pudesse tranquilamente surgir. Pensei
em voltar para a cultura dos diários que tive enquanto adolescente, mas me
pareceu uma besteira. Talvez esquecer seja o melhor que possamos fazer para
conservar o róseo de nossos rostos pensei, enquanto sentiam-me uma vítima da enganação
propiciada pela demência estoneante de minha mente. Talvez o custo da idade
fosse não lembrar das coisas e assim não poder voltar .
Logo logo, minha dúvida começou a mudar de foco. Cada vez
menos me importava onde eu estava, mas sim, saber quem era a pessoa que eu
esperava se tornou a dúvida principal. Talvez essa pessoa me ajudasse a saber
quando isso ocorreu, e me contaria quando, afinal, que tudo se deu, e talvez
ainda, me de um motivo para saber porque eu não recordo facilmente essa
memória.Ou simplesmente, saber quem era me faria lembrar na hora de todo o
resto. Ainda, de certa forma, a tal pessoa era responsável pelo filete de
agonia que quebrava a bela sensação da lembrança, a única centelha de incomodo
daquilo tudo. Precisava saber o final daquela tarde.
No sábado seguinte, vivi momentos de fobia. Senti-me um
velho por não poder recordar minhas próprias criações, rir e orgulhar-se de
minhas próprias atitudes que transpuseram-se ao eterno através do esquecimento.
Há anos sentia a idade rondando meus freios, mas nunca quis assumir tal
condição. Talvez fosse hora.
Uma coisa era certa.
Com absoluta certeza aquela lembrança não tratava-se de uma invenção. Devorei
Freud e seus apóstolos, mas o mais importante, me mirei certeiro. Não era bobo
ou criativo o suficiente para gerar tal arapuca.
Domingo de manhã resolvi passear. Há um sorvete artesanal
muito bom perto de um ótimo sebo no centro, no qual costumo ir. Na situação
estranha, entre colheradas de melado com creme gelado e tentativas de esmaecer
a mente nos versos de Juan Ramón, que tudo teve um fim. Entre uma pálpebra
confusa e outra, acordo de algum poema com a voz inconfundível de Antônia. Ela
está posta ao meu lado, e já já puxa uma cadeira para sentar-se. Tinha me
esquecido que ela morava ali por perto. Com todo egoísmo de meus pensamentos,
que só dedicados aaquele acontecido, nem passou o fato por minha cabeça, se não
poderia tê-la até convidado para um chá e dividir com ela o atual drama.
Antônia tem um rosto cumprido e cuida-se de um jeito estranho, usando
utensílios de beleza adversos, porém, conservando um ar cansado nas rotas de
seu rosto, mais derrotado que o normal para alguém de sua idade, dona de uma
certa beleza. Ultimamente começamos novamente a nos afeiçoar de forma amiga um
pelo outro. Nos encontrávamos toda a semana, com exceção das últimas pois ela
estava em São Paulo a trabalho. É uma mulher inteligente com quem as horas
nunca são perdidas.
Não resisti a informá-la da minha situação. Já tinha tentado
a explicar anteriormente para Oscar, mas sua sobrancelha tinha ficado demais
inquieta com meu relato. Jurando ter sido uma de minhas frescuras mandou eu esquecer e lembrar de alguns prazeres da
vida que estão longe da esquina do chatear-se com tudo. Antes dela por-se a contar
das ocorrências vividas em São Paulo (detesto ouvir falatórios e narrações de
viagem), a interrompi de forma brusca. Quieta, a mulher ouviu meu relato até a
última palavra. Surpreso com a falta de interrupção pela parte dela, tentei
usar tantos detalhes que no final tinha esgotado o que dizer, mesmo que tenha
sentido que seus olhos ansiavam por mais informações, me emudeci.
Depois de um tempo, visivelmente atingida, Antônia deixou a
confortabilidade da cadeira e levantou-se para sinalizar uma fuga ou abandono.
Tristemente decepcionada, deu-me para meu mistério uma data e um local:
“ Agosto de 82, Praça
do Reino”
Continuei confuso, e pretendendo entender de vez aquilo
tudo.
“Esperei você até perto da noite, mas você não veio, muito
menos avisou. Fiquei lá sozinha, a ver o dia
morrer, ”
Antônia foi embora de forma silenciosa, talvez sem pensar em
ver-me novamente. Naquele momento uma leve felicidade me aportou. Acalmei-me
como nunca antes, enquanto os nervos aterrissavam
da tontura em um acamado descanso. “Nada escapa a essa mente que nada esquece”,
pensei. Minha idade estava absolvida. Posso dizer que encontrava-me em paz.
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