quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Os dedos

Foi o dedo dele que o trouxe aquele mundo. Era redondo, e extremamente separado dos outros dedos do pé, como se tivesse problema de sociabilidade ou vontade própria. Ou como quisesse fugir. Mas o importante não era o que o diferenciava, mas o que o unia. Era o mesmo dedo que meu pai possuía, que era o mesmo dedo de meu avô. Algo que só fazia sentido enquanto todos estavam reunidos, e quando separados, parecia uma pequena aberração da forma humana. Como se houvera duas pessoas a dividir cada pé. Um desenhista cansado.

Eu não era nascida. Mas minha avó conta que trouxeram o menino em dia de Cosme e Damião. Como se fosse um pacote de doce, como se o doce fosse a cura, foi isso que pensou minha avó, ainda deprimida pela morte do marido. Ainda assim não se deixou convencer. Recebeu a criança por desespero, a colocou no centro da sala, em cima do sofá, e a examinou como um joalheiro em uma investigação prolongada. A mãe havia morrido no parto, a vizinha trouxe a criança, muito quieta, a ponto de só por isso duvidar que era filha de meu pai. Não havia intenções de dinheiro, não havia interesses às claras. Minha vó examinou cada pedaço do pequeno até chegar nos dedos do pé e ali tinha certeza, era seu neto.

Segundo meu pai, os dedos de nossa família nem sempre foram assim. Foi depois que meu avô foi para o quartel. Não conseguiu fugir do país a tempo, era o início da ditadura militar. Pior do que o colocar na cadeia os militares o colocaram dentro do quartel, antes de entender tudo que estava acontecendo, aténs de ter idade para ler livros, estudar, conhecer gente, ir a congressos clandestinos, participar de partidos ilegais, quando tudo era apenas uma raiva sem nome. De noite, nos confins da fronteira, no extremo sul, ele e seus amigos viviam uma vida dupla. Contra o inverno eram peões livres, sabiam usar a lenha, cultivar a comida, sabiam reconhecer os animais e usar o frio ao seu favor. Nas leis do quartel tinham dono e tinham um corpo em que se hospedavam, no máximo. Em algumas noites conspiravam. Tinham um rádio onde ouviam em castelhano as notícias vindas da argentina e Uruguai. Os governos de lá ainda não tinham caído e a rádio pirata tentava ao máximo denunciar crimes a partir de histórias que todos conheciam. João, Pedro, Afonso, dizia a rádio. Todos conhecem no Brasil um João, um Pedro, um Afonso. Como saber se não esses que se encontram presos? Como viver com a dúvida? Meu avô e seus amigos decidiram tentar escapar para o Uruguai mas na primeira tentativa foram pegos. Foram deixados no meio do campo por semanas sem água, comida, no frio do inverno subtropical. Dormiram em covas abertas de defuntos em cemitérios abandonados, se alimentaram de pequenos caramujos. Quando enfim acharam que tinha acabado tudo, os soldados que nunca haviam lhes perdido de vista voltaram com a última lição. Como vocês são um grupo, disse um tenente, vão sofrer com um grupo. Um levou uma surra na cabeça, outro teve as mãos deformadas, outro os ombros detonados. Meu pai, teve os pés massacrados. Se juntar todas as partes avariadas temos um morto completo, riu um dos cabos compreendendo a mensagem do tenente. Sempre em um grupo há um morto. Todos igualmente haviam perdido algo. Depois disso, foi dispensado por questões de saúde.

As irmãs de meu pai riam quando ele dizia que o soldado passou de pai pra filho. Depois de ter os pés torturados, com sua pisada levemente torta, seu filho nasceu com a mesma deformação que agora tinha. Para a família era uma coincidência infeliz, mas uma lembrança, de que meu avô tinha sobrevivido. Que a família era forte, um sinal divino, abençoado. Não era, como estava certo meu pai, uma herança passada automaticamente, como se parte de meu pai tivesse começado a nascer diante daqueles cabos aturdidos e sanguinários. A genética não explicava este absurdo. Não fazia sentido. Era impossível.

Meu pai não recebeu bem meu irmão a primeira vista. Estava com um certo medo, medo do julgamento, medo da família. Ele não sabia ao certo nem de qual mulher o menino tinha vindo. Dessa forma, demorou um certo tempo até descobrir. A partir disso, se afeiçoou mais a ele, amor que cresceu aos poucos. Com o passar do tempo o menino virou sua maior felicidade. Levava ele para mostrar aos colegas do trabalho da fábrica, nos encontros com outras mulheres, tirava fotos sem parar. Virou sua maior conquista. 

Depois de um tempo conheceu minha mãe, ela era enfermeira em um posto de saúde. O menino tinha uma febre que não baixava. Minha mãe recebeu o menino de peito aberto como se fosse seu próprio sangue. Era como um pequeno adulto, muito educado, muito quieto, mesmo quando doente, era uma doença imperceptível que apenas os mais chegados poderiam notar, com certa dificuldade.

Quando meu irmão fez três anos meus pais começaram a ficar preocupados. A criança ainda não falava. Nem mamãe, nem papai. A criança não falava nada. O levaram a médicos, especialistas. Nenhum conseguiu encontrar o motivo. Em sua fisiologia tudo estava bem, era saudável de fazer inveja. Isto começou a incomodar meu pai. Ele tinha medo de isto ser uma espécie de castigo. Algo nele intuía que aquilo não iria melhorar. Começou uma obsessão. Foram contratados pedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, todo tipo de especialista. Linguistas. Todos métodos de alfabetização conhecidos foram aplicados. A criança se recusava a falar uma palavra qualquer. Foi a essa altura que vim ao mundo. Como um pedido íntimo de meu pai e minha mãe de que as coisas fossem normais.

Meu irmão era como qualquer outra criança. Poderia vivenciar a tristeza e felicidade em seu ponto mais alto, sem amarras. Em puro êxtase. Era uma criança divertida, inteligente, cheia de energia. Mas não falava conosco. E isto não o preocupava. A mim tampouco. Meu irmão veio antes de mim ao mundo e para mim ele era o mundo que eu conhecia. As vezes sentia que vê-lo já era todo aprendizado que eu precisava. Queria ensinar a ele nossa língua mas a verdade é que meu irmão não precisava de nada, nunca precisou. A medida que ele crescia o verdadeiro problema era meu pai. A não expressão desejada de meu irmão virou sua vergonha. Ele sonhava compartilhar com ele as histórias que ouvia de seu avô, do jeito que foram contadas. Usar as mesmas expressões, até ouvir de sua boca os mesmos xingamentos. De falar palavras que só eles entenderiam o resultado. De ensinar o nome das plantas, das constelações, da comida, as lendas, assim como seus ancestrais chamavam.

Um dia, meu irmão estava mexendo na TV a cabo. Deveria ter no máximo oito anos. A essa altura já frequentava uma escola. Entendia tudo mas não se comunicava. Ele parou em um canal estrangeiro, TVE. Os apresentadores falavam rápido de forma ruidosa. Neste momento escutamos uma voz estranha vindo da sala. Lembro que cheguei primeiro, era calor, e meu corpo estava melequento, sujando o piso completamente e tudo cheirava a corpo, fungos, bactérias, fermentação, misturado com as flores da estação de nosso bairro. Meu irmão começou a falar comigo mas eu não o compreendia. Algumas palavras saltavam, como a palavra campeonato. Olhei a TV, homens e mulheres surfavam em uma ilha do Caribe, mas não conseguiam entender o que diziam. Meu irmão falava normalmente como se tivesse falado a vida toda. Mas falava em outra língua, falava em espanhol.

Não fez grande caso, chegou na cozinha e perguntou o que comeriam mais tarde. Minha mãe levou um susto. Acho que estava falando português mas como nunca tinha falado antes, no início, saia meio esquisito mesmo. Lágrimas escorriam de seus olhos de felicidade. Depois de um tempo a mostrei a televisão. Estes momentos onde os filhos ainda crianças ensinam coisas óbvias aos pais são os momentos mais preciosos da vida para quem sabe acolher. Mas a maioria não sabe. Minha mãe diante da loucura daquela situação decidiu não entender apenas comemorar com o que foi dado. A altura que meu pai chegou em casa, ela já havia comprado um dicionário de português-espanhol. Quando o menino pediu para “cenar”, ela já o tinha na cozinha, e entendeu rapidamente que o menino queria já a janta. Nada nele tinha mudado mas lá em casa tudo estava diferente.

As mulheres de nossa família pareciam não se importar. Não precisavam de explicação. Não precisavam que o neto o filho ou o irmão falassem a mesma língua que elas. Ele decidiu falar sua própria língua. Poderia um dia falar outras. Mas a língua de nossa família, ou se recusava, ou era incapaz de aprender. Incapaz até mesmo de escutar. Minha mãe foi a que mais rápido se dedicou aos estudos. Contratou um professor para toda família. Meu pai se recusou. Para ele era uma prova de que seu filho o ignorava. Que não o amava. Que era de qualquer coisa, ou situação, menos dele. Era como se não tivesse um filho. Ao longo do tempo começou a ficar muito calado. Quando se aposentou, e se aposentou muito cedo, passava os dias como um fantasma pela casa enquanto todos nós falávamos o castelhano, vivíamos uma vida normal. Não era um castelhano com acento argentino, ou chileno, caribenho ou do sul da Espanha. Era um castelhano com nosso acento. Uma língua feia, dizia meu pai, rude e distante. Uma língua que mesmo que se soubesse teria decidido esquecer. Embora claro, já saibamos, seja impossível esquecer uma língua. Impossível esquecer mas bem possível não aprender.


sexta-feira, 3 de junho de 2022

susana

nós achávamos que todos iam morrer. todos os vivos. digo todos que pensavam, sabiam, estar vivos, viviam a vida com uma sana de consciência. alguns já pareciam ter ido. suar cabeças, solilóquios desistentes, o corpo lento. estávamos em um quarto de hotel, havíamos chegado fazia uma semana e meia em Lima, e logo após, decretaram o toque de recolher. uma misteriosa doença. na américa latina? já havíamos sobrevivido a tudo, tudo longe era uma doença. parecia um deja vu historico eu comentei com susana logo nos primeiros dias. minha mulher me amava, sim. mas não o suficiente para me responder? não o suficiente para me contar o que passava, seus pensamentos distantes, encolhidos, periféricos. minha mulher me amava mas o amor nunca foi algo o mais relevante. o definidor. susana já estava distinta havia alguns meses e aquela viagem era uma desculpa para que pudessemos ficar distintos mas com uma razão a mais, exterior. eu a observava como um pássaro insistente, num dia de chuva, com  a barriga em pedaços. buscava em seu rosto qualquer rastro que poderia ser lido como um a palavra.

susana sempre foi cabeça dura. um teimosia charmosa, que vira impulso, e arrisca ser sedutora. nunca entendi porque me procurou. os anos que passamos juntos foram os melhores de minha vida, com certeza, mas como foi comigo, poderia ter sido com qualquer um outro. eu amava susana ao ponto dela me desprezar por isso, minha busca por compreensão, minha incapacidade de ficar irritado, meu trabalho árduo em mima-la, em demonstrar-me alegre com qualquer pouco, a minha não exigência de sua presença, de seu modo de agir, incapacidade de critica-la. não buscava compreender com análises sórdidas e psiquismos baratos o porque disto, mas sabia que a causava um desconforto. embora estivesse ali semrpe tive a sensaççao que minha mulher stava em outro lugar, como se esperassemos alguem que iria chegar a pouco. tenho essa sensação desde a primeira vez que a vi e nunca desapareceu. como se aquela fosse quem ela era mas ela nao gostava de quem era. quem seria essa pessoa? o que ela queriria? como seria susana perto dela? uma mulher ainda mais irradiante? alguem capaz a cedear a tudo?

a essa altura eu ja sabia o seu nome e endereço. eu mesmo já tive alguns casos com homens na faculdade e na adolescência, dois ou três, que me fizeram perdoar o resto de todos eles. encantamentos temporários, que nunca deram em algo mais sólido. mas aquele homem, entendi completamente minha mulher. era um grande jornalista que recentemente tinha sido demitido de um meio de comunicação importante de nosso país. tinha varios livros publicados, era destemido, escrevia sobre tudo: moda, esportes, crime organizado. era conhecido por um temperamento forte mas tinha, eu diria, olhos doces. olhos doces e levemente despencados o que conferia uma leveza a tudo que falava.

foi através de ana que descobri o nome de Federico. Susana só o chamava de um antigo namorado. não contava nada pontual, tudo era genérico. eu tive pena de minha mulher por algo a doer tanto. eu tive uma curiosidade tremenda de saber o que se passou. depois que ana tocou em seu nome, busquei outros amigos, professores da faculdade, trabalhos que estivessem atuado juntos, até o dia em que eu mesmo entrei em contato com o próprio. tinah acabado de ser demitido, a namorada havia o deixado. fiquei tão mal por ele que o convidei para um choppe, para nos conhecermos pessoalmente o que seria um risco. ele não se deu ao trabalho de pensar direito, me tomou um por um fã louco, um ex colega de trabalho que não recordava muito bem, um antigo aluno. precisava que alguem o buscasse de carro e pagasse algumas rodadas em seu bar favorito a lapa. precisava escutar as musicas alegres que mais amava e chorar e lembrar que elas tambem o faz chorar e precisava de alguem junto. se minha mulher descubrisse acho que nunca me perdoaria. considero isso uma pequena traição contra susana, mesmo com a melhor das intenções. era uma traição. me coloquei em primeiro lugar. e minha curiosidade ocupava um andar inteiro.

entre uma rodada e outra falou, falou. desabafou como se fossemos amigos de longa data. chamava por nome, sem contexto algum, pessoas como se eu as conhecesse. estava quebrado, deserdado por parte dos pais, tipos ricos da zona sul mas com péssimas filiações politicas, na faculdade estava sendo investigado por um comite de etica depois de dormir com uma aluna e só dava três disciplinas, incluído, etica. etica jornalsita. ele ria sozinho. falou que o ultimo livro estava na editora mas queria mesmo era sair por ai, escrever uma reportagem sobre a madeira na amazonia, ir a campo, investigar a monocultura no cerne das pequenas cidades, entende? nas igrejas, nos bares, falar com a gente. ele dizia que a monocultura não tem a ver com terra, é um tipo de pensamento que dispara na cabeça de pessoas, das mais gentis as mais familiares até as mais violentas. essa gente que vive nesse lugar de um dono só, com uma ideia que o tinge durante qualquer fio de horas. onde o patrão é tudo que há em volta. citei um faroeste de sergio leone, dos que vivem para trabalhar e trabalham para não morrer. ele riu, conhecia o filme, é claro. o peguei em cheio.

uma hora foi ao banheiro e quanto voltou, depois de escoar tudo que necessitava, finalmente perguntou de mim. acho que a cachaça o fez esquecer como favia parado ali, talvez, em sua nova reconfiguração de memoria, tivessemos dividido uma cerveja interminavel no boteco e assim que nos conhecemos. ar sou advogado, eu disse. advogado tributário. ele gargalhou como se estivesse o contando uma piada. esta é a hora que você me conta o que realmente queria fazer com sua vida, ele me disse e eu deixei o silencio inundar o ambiante. não tem mais nada que eu queria em minha vida, o disse denunciando minha pequenez aos olhos daquele sujeito. me preocupava com a manutenção. em manter o que já tinha. em segurar firme um momento e mergulhar nele cada vez mais, isto me dava um senso de movimento. estar. realmente estar, entende? ele logo desviou o assunto. não estava interessado em mim. ele era bonito em sua contradição. quando perdia as palavras ou o sentido da frase abaixava a guarda. era frágil. seria ali seu encanto? mas na maior parte do tempo era apenas algum rude, cansado, que falava dos outros para falar de si em uma filatropia disfarçada. um gozo coletivo que se resumia em uma piada interna. me perguntei se havia um serviço público neste comportamento. o homem não vai ao consultório do terapeuta mas denuncia uma quadrilha de roubo dee agrotóxicos ilegais e tudo é perdoado. minha mulher se parece menos interessante perto deste sujeito. não sei se puderia me apaixonar por ela. teria o deixado? penso no desespero de ser deixado por um tipo assim. nos sacrifícios que fez que nunca faria por mim. vejo brigas diárias e um sexo que parece valher a pena até que ele acaba. que seria bom também porque se acaba.

o deixei, paguei a conta. o pus em um taxi. podia sim ter ido a sua casa. termos bebido um uisque, tentado ver as fotos de susana em algum lugar. como quis ver as fotos um dia como quis imagina-los juntos. em minha mente ele era um tipo especial, com uma aura encantadora. um tipo a altura de minha mulher, maior que sua afetividade. atraente, justo. não me doia pensar neles juntos, ao contrario, me intrigava. confio em minha mulher tanto que confio até o passado. de quem escollhera para sua vida fosse alguem que nao a botasse em perigo, que fosse alguem que tinha a maquinaria da mente composta de uma forma genuínamente avassaladora. me senti confuso e de chateado, brochado até mesmo. desejava nunca mais o ver. desejava ter devisto o que vi. era um coitado, pensei. um lindo, bonito mas patético coitado. que  mesmo depois de ser deixado ou de fazer ir embora uma mulher a altura de minha esposa, não mudou em nada. era imutável perante as circunstâncias como uma era geológica. estava tão só como uma broca.

foram 14 dias naquele quarto de hotel. susana emudecida em frente aos telejornais em espanhol. eu me trancando no banheiro para falar com ana, minha amiga, me sentindo culpado por seu desprezo ou silenciamento. mas havia isto, uma doença misteriora nas ruas, estavamos no exterior, a televisao estava falando o idioma materno idioma da infancia de minha mulher, longe de casa, sem saber se viveriamos, se voltariamos, com as pessoas tendo os mais estranhos sintomas, impedidos de andar, como bois em uma baia. não era apenas o mesmo quarto de hotel. minha mulher estava presa no mesmo pensamento. não podia perguntar qual era não poderia me contar. mas poderia se irritar comigo. aquele podia ser o fim do mundo e ela estava comigo. nunca me fez para o fim do mundo minha mulher, sempre fui uma espécie de enquanto profundo. enquanto algo não acontece. enquanto ele ou ela não chega. sentia medo de em sua respiração ouvir o barulho escapando de sua imaginação, a fantasia de pegar um avião e encontrar com ele. aquele sujeito. ou qualquer que fosse. até mesmo apenas estar só. era como se a vida estivesse finalmente começando. 

foram dias em que me usava para dormir. e as palavras eram cobertar de mais silêncio. não a reconhecia. via nela a tristeza dele. via o egoismo dele no olhar desviado, a falta de coragem no modo de segurar os talheres. não tendo mais nada  perder, antes do fim da temporada de lockdown disse para ela que conheci um ex-namorado seu. foi sem querer, nos cruzamos em um bar. não contei antes não entendo porque, acho que precisava pensar sobre o meu lugar. pensar em mim mesmo, eu a disse. me olhou assustada como quem busca um local para se proteger. não sei se era vergonha, repulsa, raiva. se sentia-se extraviada, invadida, descoberta ou se apenas eu tocara em um assunto que não era de sua preferência, que era algo perto do nulo. minha mulher ficava cada dia mais irreconhecível para mim. não falei a verdade. que gostei do sujeito pelas razões erradas e intuo que ela tambem o gostou por essas razoes. que pensando bem não gostei do tipo. que aquilo não me agradava porque ia contra o que pensava dela e nao pelo que vi nele. naquele dia misteriosamente as porta do hotel se abriram. depois de algumas semanas a misteriosa doença assim como chegou se foi. entendi que precisavamos ir embora. o que mais me machucava em isso tudo era estar com alguem que entendi ser uma pessoa covarde. senão tinha coragem para estar com aquele tipo não tinha como eu estar com ela. o amor não se explica, uma vez ela me disse. citei a frase a ela e em seguida o expliquei. abri meu coração como uma sanduichera. entreguei tudo que tinha sabendo que morreria de fome nos próximos meses. queria que minha mulher fosse mais. sempre mais, sabia que poderia. ao chegarmos no brasil a deixei.

sábado, 19 de junho de 2021

você lembra

 Lembra daquele dia em que você saiu e eu desenhei nas paredes do quarto todo um mapa eu disse, ei, calma, é um mapa para sempre voltarmos para casa, além disso o giz de cera  sai com certo esforço e quando você voltou voltou com uma voz rígida e elástica e foi ela que gritou algo do tipo

você não é mais uma criança para ser proibida de ficar sozinha, para destruir a casa de nossos pais em menos de uma hora, ainda mais nunca vi um mapa do tamanho de uma casa isto não faz sentido o mapa tem que ser passível de ser levado

E você caiu duro no carpete porque tinha esquecido de tomar seu remédio

E agora este era você um nome um corpo como bolinha de pinball dentro

Do seu surto epilético, batendo batendo, só faltou os ruídos serem em teclado midi

Coloquei a mão em sua barriga como se fosse o topo de uma montanha congelada

Tentando segurar o gelo acumulado por anos para que ele não caísse

E o vilarejo ao redor sobrevivesse a uma possível avalanche

Coloquei um travesseiro embaixo de sua cabeça e deitei no seu corpo como quem tenta forrar o sol excessivo num dia de praia e você ainda vazava por baixo de mim embora eu esperneasse para juntar os braços e as pernas melosas, moluscas, sólido estuário,

Ainda assim uma hora você parou foi aos poucos e eu olhei tanto para as paredes que entrei nelas e senti os riscos em mim as margens as trilhas os caminhos o peso do tesouro um borrão de giz

Surgiu uma tristeza muito grande e corri para o banheiro para me lavar o mais depressa

Quando você acordou na sua cama eu esfregava ainda os rodapés do quarto

Eu te dei o remédio então disse acho que não está dando certo

Limpar é inútil

E você disse tudo bem querida não tem problema sobrou um pouco de tinta amarela no porão

E foi assim que ficamos com o quarto todo dessa cor, você lembra?

Logo depois mamãe ficou doente e a internaram na clínica. Mandamos mensagens para nosso pai com diversos perfils fake na internet, oferecendo até mesmo vagas de emprego, fizemos de tudo para que entrasse em contato mas ele apenas visualizava e não respondia - talvez fosse um sexto sentido contra a gente. E então a assistente social veio e conseguimos convencê-la de que sua certidão de nascimento estava errada e você tinha de fato 20 anos, um emprego estável como fabricante de portas e um humor de dar inveja a qualquer terciário. Seu nome era Eva, como de nossa avó, e quando ela foi embora confundimos as duas coisas e quase imploramos que ficasse mas ela foi, eu olhei seus olhos vermelhos como duas panelas de pressão pensando ai meu deus o que será que tem ali dentro agora, você abriu um pacote de salgadinhos sabor laranja (era assim que chamávamos, como se as cores fossem sabores mesmo porque essa era a realidade da indústria de alimentos) e você disse agora é só eu e você, agora somos só nós dois, e as migalhas corriam da sua boca para seu pescoço e grudavam no sofá e pela primeira vez na vida eu comecei a me importar com a saúde e com a vida dos sofás.

Por um tempo fomos o melhor que poderíamos ser porque éramos nós mesmos no futuro

Eu era uma adulta de onze anos de idade

Você era uma criança com muitos anos de idade mas o responsável

Limpávamos a casa com a mangueira do jardim, guardávamos as sobras dos dias para fazer a sexta-feira da lasanha, que era o resumo da comida de uma semana inteira, nossos rituais de ir dormir onde contávamos o que faríamos no outro dia como se fossemos corretores famosos da bolsa de valores para pegar no sono

ah sim meu chapa eu ouvi falar que o futuro está na engenharia de energia ligada a células de movimento, vamos vender a energia dos passos dos trabalhadores de Manhatan, ouvi dizer que a seção do Banco Schelmann vai fechar porcausa da inflação na Estônia ou do caso da Ruth com a vodka de quiabo, não lembro bem

E dormiamos

E você me levava a escola

E eu te levava ao médico

E regulava seus remédios como um astrônomo mede a luz de uma estrela

E você sera meu deserto Atacama

Com o observatório de Astronomia do deserto do Atacama bem do centro

E quando a pensão da mamãe caía no banco gastávamos uma parte considerável em comidas de outros países para fingirmos estar viajando e quando você dormia

Eu nunca contei isso

Mas eu costumava falar com você enquanto você dormia

Porque eu queria que me conhecesse verdadeiramente

Eu dizia eu vou cuidar para que tu tenhas sempre todos teus dentes ou seja para que tu nunca tenhas uma crise de novo mas se vier tudo bem

Eu não gosto de frutas pequenas porque me lembram uma timidez que me deram quando bebê mas eu as compro para você

Eu não me importo se for sua mãe agora porque no futuro você será ainda meu irmão

Eu te amo até mesmo como um mapa embaixo da água

Porque não precisa ser perfeito

Só precisamos lembrar o caminho de casa

Mesmo sem nunca ter tido nenhuma casa

E os mapas virem antes

das Casas


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

uma espécie de greve de acontecimentos

Eu não tinha realmente mais nada com o que me preocupar.

Antes eu passava a maioria dos meus dias desenhando meus próprios seios, imersa em um loop de olhares entre eles e o espelho de aumento que sempre acabavam com qualquer pista do que poderia haver de errado comigo. Na minha cabeça meus seios eram a velha borra de café. Sabiam de tudo inclusive mais pra frente. Costumava deixar o carro para lavar umas duas vezes por semana com uma pretensão minúscula de organizar as estantes quebradas da minha vida. Às vezes pedia dinheiro as crianças nos parques em uma estranha inversão de papéis que servia apenas para gerar um comichão, um riso, como se eu realmente representasse qualquer tipo de ameaça a ordem do tempo, das coisas.

Mas agora isto tudo não é mais tão tudo assim. As coisas ficaram simplesmente mais fáceis no dia em que resolvi parar de falar. Nadis. Nadic de nada.

Meu primeiro pensamento após esta resolução foi escrever algumas cartas aos meus amigos no ímpeto de buscar alguma garantia para o caso de ficarem zangados ao ponto de fazem meu rosto um tutorial de auto-defesa, trazerem seus cachorros para fazer coco em meu pátio, esse tipo de coisa. Então compreendi de verdade onde estava me levando. A idéia toda de não precisar falar também consistia em não ter que dar explicações como essa. Nenhuminha.

Se não há nada mais tedioso do que não ter ninguém para conversar, ter e não falar soava uma forma certeira de alívio e excitação.

Nos primeiros dias não foi tão fácil. Nos restaurantes e cafés, havia vezes que as pessoas me tratavam mal quando não respondia suas perguntavas, apenas apontava o pedido no cardápio. No caso de tropeçar em alguma alma viva sem querer, na iminência da obrigação do pedido e desculpas eu apresentava uma expressão gosmenta com os olhos, a mesma expressão que sempre imaginei que as freiras usavam quando assistiam o jornal local ou tinham que orientar uma jovem grávida, sozinha ou sem muito dinheiro. Algumas pessoas me xingavam, outras se assustavam com as nuvens do meu rosto, fugiam, deviam achar que era transmissível.

Havia vezes em que saia para beber em algum bar apenas para manter o costume, algum homem seu aproximava, e era mágico vê-los falando sozinho, o que de fato entendi que gostam e muito. Por um dia ouve esse baixinho, com um problema na perna, que me dizia que tinha atropelado a si mesmo, coisa que não entendi muito bem. Falou muito sobre uma de suas avôs, me disse que eu lembrava muito ela, não sei se pelo fato de ouvir ou não falar nada já que os mortos não falam, depois me agradeçou com um abraço e foi embora para aqueles lados dos quais nunca mais vi.

 

Claro que havia também outros que muito irritados ameaçavam estourar os copos do balcão apenas com uma promessa, mas logo o bartender os dizia, “esta aí tem um problema, esta aí é muda” e eles mudavam o olhar para um celeiro de piedade, seus rostos eram um feno fofo, ficavam os cabeças cheias e tiravam seus chapéus logo em seguida.

Há pessoas que param de falar por traumas. Histórias nefastas, de morte e dor. Seria como um acidente de carro, perder uma perna, um acidente de trabalho, perder um braço. Assim é a voz, nosso complemento de corpo invisível e gozado. E também há pessoas como eu. Que fazem disso uma escolha por simples tédio.

Então teve um dia que eu tinha que dar uma palestra. Uma aula na universidade.

Uma vez a cada seis meses eu sou convidada por uma amiga para conversar com os alunos de sua classe, que recém adentraram na academia. Não sei por que – além do fato dela gostar de mim – o qual o motivo teria de alguma penca de jovens ficarem me ouvindo falar por uma hora com seus rostos esfolados pela não escolha e pura piedade. Normalmente, eu os mostrava fotos do tempo em que trabalhei com Figaro Valério, um conhecido escultor de perucas, isto ainda na minha adolescência. Houve um tempo em que tentei de todo modo me tornar uma artista, um tempo no qual Figaro fez parte, minha amiga fez, meu ex-marido, e até meu último cachorro.

Minha amiga insistiu para eu ir e eu fui. Depois de dois dias na casa dela descobri que nunca parar de falar pode ser considerado um ato egoísta. Matilda falava sem parar da sua vida, do amante armeno que fazia um barulho sexual de máquina industrial (da revolução a vapor), as fofocas dos colegas em crise de meia idade com nudes circulando entre iphones de alunas, do fato da filha não falar mais com ela depois que votou do Partido Liberal. Era uma mulher pelo menos, diz minha amiga, tu sabe muito bem que nos outros ano eu votava em quem era bonito. Na dúvida, todos os navios no bonitão! Este era meu lema, lembra? Nunca comi tanto escondidinho na vida com tipos de soja diferente isso posso dizer. Na hora de dormir lutava para encontrar minha própria voz na minha própria cabeça. O agudo cortante deminha amiga vinha com tudo nos olhos fechados e se misturava com o timbre do garçom falando de como as laranjas vieram do oriente-médio, misturava-se com meu porteiro desabafando com o genro e a síndica gritando sobre os pingos dos ares condicionados em sua voz cavernosa. Fiquei levemente agoniada, pois me dei conta que não só havia parado de falar mas também parado de pensar estar falando. Parado de pensar em mim na primeiríssima pessoa.

A palestra foi sem dúvida inesquecível. Minha amiga fez questão no inicio de dizer que eu estava fazendo um experimento artístico, sendo em uma artista que me entregava de corpo e alma para o trbalho prático e teórico, já estava no nono mês de minha investigação, uma vez que não me considero uma artista, mas não poderia falar nada porque não falava mesmo. A aula magna era sobre jornalismo e não tinha nada a ver com arte era isso que eu queria dizer se pudess jornalismo não tem nada a ver com arte, então, mostrei algumas sessões de imagens que eu mesma tirei durante meus anos trabalhando em redações. Eram de meus colegas de trabalho em seu local típico, mortos de cansaço, corroídos pela rotina, dormindo em cima das mesas, com olheiras, devastados por café, cigarros e péssimas noções de estilo. Numa das fotos meu colega Barney o correspondente de Washignton que usava nossa sala emprestado pela filial comia um hamburguês com uma mão enquanto segurava o telefone na outra e em sua camisa o katchup e a mostarda se encontravam. Ao fundo havia o calendário escrito 31 de dezembro e um relógio marcando 00h23, uma redação vazia e escura. No ultimo slide eu botei uma frase bem besta escrito “me contem essa história, me falem de vocês” pela motivo maior da preguiça de ter que desenvolver algo sem poder falar.

Mas logo logo entendi onde me meti. Minha amiga me usou para sua rinha de alunos ansiosos e ambiciosos, aqui está meus caros, treinem suas táticas. Como entrevistar alguém que diz nada? Alguém que se recusa a falar? Aumentem suas técnicas! E os alunos não paravam com novas táticas de persuasão que vinham desde elogios estendidos como adorei como você trouxe o jornalista como o personagem da noticia e tratou do tom pessoal e subjetivo como necessário para a atribuição de sentido e autentificacao da verdade na era da pos-verdade, ou criticas ao capital humano explorador das grandes fabricas de noticia, ou, também, como alguns tentavam me fazer abrir a boca com insultos e jogos psicológicos, citando historias escabrosas que encontraram de mim na internet e todos meus relacionamentos falhados para me tirar do eixo. Ninguém falou de si como pedi, mas duas semanas depois, minha amiga confessou que 4 largaram o curso.

Voltei para casa irritada e com menos vontade ainda de abrir o bico.

Algumas semanas se passaram e a vontade de falar não era mais uma decisão mas falta ed vontade mesmo. Cada vez mais as palavras não vinham e eu parecia estar loge de mim e longe ate mesmo do vocabulário do silencio. Eu estava em lugar algum. Podia passar dias vendo os carros da minha janela e olhando as nuvens do céu sem nenhum pensamento sequer na cabeça eu nem saberia dizer se seria capaz de emitir um som novamente, se minha voz seria a mesma. Eu já não escutava mais nada, apesar dos barulhos, das pessoas me dizendo coisas. E eu estava com medo, cada vez mais medo do que poderia sair de minha garganta, do que finalmente poderia sair, se fosse grande, entalar, no meio do pescoço uma palavra no meio do caminho.

E foi esse o dia em que resolvi aprender a falar italiano e fazer o que todos nós fazemos inconscientemente mas não consicentemente como eu, isto é, desviar a atenção colocando a cupa de algo em um objeto que não tinha nada a ver, isto é, o português, a nossa língua. Com a ajuda de um tutor, muito chá de capim e sorvvete de pistache depois, meditação, ajuda médica e técnicas de resiração depois, consegui falar pela primeira vez depois de um ano e meio. Qué facho Pascole, eu disse a meu tutor, que me olhou incrédulo como se eu o tivesse agora roubado sua voz.


2017-2021.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

hoje é feriado internacional da espinha no meio da testa

A sua irmã se mantém quieta na maior parte do tempo

Ela empilha uma risada na outra como um tropeço no rosto e quanto cai vira uma gargalhada

Escuta atentamente os convidados falarem eles são mais velhos que ela embora usem roupas parecidas com a dela

eles leram os mesmos livros que ela está lendo embora por motivos completamente opostos

mas isso não parece ter nenhuma diferença claro sim há uma tristeza ali uma tristeza que aparecerá mais adiante porque a tristeza é assim ela vem aos poucos submergindo de forma indireta por tudo que é direto não pode ser falada pois é um testemunho fechado

Eram umas seis pessoas ali bebendo cerveja e fumando maconha enquanto as ruas estavam fechadas devido ao golpe de recolher

Golpe de recolher? essa palavra não existiria ainda

Toque de recolher não alguém grita muito menos Golpe de recolher porque hoje é feriado internacional da espinha no meio da testa sagrado em todas religiões adoradoras de cristo e nike

Feriado que nada diz outra pessoa fechando um tabaco

Soou a sirene e nesse exato momento mísseis serão disparados para um país que não é o nosso mas que fica ao nosso lado mas um país não costuma ser confiável ao passo que um míssel é e assim finalmente saberemos onde estamos

Um país é uma ameaça localizada será que isso cabe em uma gargalhada lustra-móveis

Ela não entende porque eles bebem tanto será que não percebem que nas fechaduras dos olhos no lacre da boca a pele começa a ceder e isso tem a ver com os copos as garrafas  a cerveja de noite de dia sozinhos juntos mas principalmente e muito sozinhos as olheiras são a contrapartida a pele amarelada e fina a ponto de se rasgar por nada

E a velhice talvez seja isso fazer a mesma coisa sem parar até o corpo ir se deteriorando e a bebida é uma corcunda por dentro também E a velhice talvez seja não o fim da juventude mas o desejo do fim dos jovens das vontades jovens dos novos medos

Seus amigos só bebem eventualmente em uma festa ou outra é necessário um contexto para as fotos para os vídeos é necessário confiança e uma dose de responsabilidade Sua geração gosta da organização pois nasceu em uma linha do tempo não metafórica Em 2001 estou pelado e cheio de meleca no facebook de meu pai

Ela dá um pega no base e agora para de rir alguém decidiu falar sério ali e ela está com dificuldade em se concentrar

Porque está de saco cheio do trabalho no estágio e hoje de repente entre uma torrada com ovo e um chá de hibisco as palavras de Marlene onde estão os papéis veio com tudo em sua cabeça significando também os papeis de cédulas de dinheiro os papeis dos cartórios de nascimento e de noivado os papeis de todas notas fiscais preciso organizar minha vida e talvez ela não perceba na hora mas foi uma crise de ansiedade das grandes que levará para a análise Meu papel social Meu papel amoroso O papel no país está acabando vem da Argentina e eles cobram um bocado

Alguém falou algo sério

O pai está no hospital e teve um sonho com seu pai se despedindo

Ele falou isso do nada enquanto comia uma fatia de pizza de Marguerita

Ela não costuma ligar para sonhos embora acorde impregnada em seu capuz e chore por um pesadelo o resto do dia ou fique feliz sem entender qual é a ligação depois de acordar e a nuvem do sonho dure o dia inteiro Ela costuma não costuma ligar para sonhos dessa forma:

Como sinais divinos

Contatos extraoficiais

Previsões misteriosas

Contatos do além

Benções

Mas o que a deixou levemente consternada foi o jeito que ele falou bebendo aquela cerveja e de formas despretensiosa mas depois ela sacou rapidamente não era desdém

Mas era a única forma que ele conseguiria falar disso

Bêbado e no meio de uma conversa sobre animes e os memes do presidente da república se ele fosse um personagem de bob esponja

A única forma de falar ela pensou

Quieta enquanto observava o que cada um poderia dizer  esquecer de dizer dizer sem querer ou por muito querer

Enquanto a rua lá fora não tem carros apenas sinais de luz silenciosas como estrelas vindo de outros apartamentos apartamentos que parecem tão longe quanto qualquer outra estrela no céu Altair Beltaguelse Alfa Centauri os Carros do passado da galáxia são tão bonitos

Os carros já são coisa do passado

E cachorros vasculham qualquer falta de movimento como liberdade

E as árvores parecem mais cheias que de costume

E o barulho é coisa muito íntima que acontece apenas muito dentro muito perto dentro dentro

É porque há uma doença misteriosa lá fora deu no jornal alguém diz

É porque o asteroide Eric Clapton talvez caia ou não esta noite mas é provável que sim e é homofóbico isso um asteroide chamado Eric Clapton ou é uma coisa boa afinal? Por dúvida ficamos em casa

Porque há uma outra espécie

No planeta

Não detectada e pode ser tóxica mortal para nós

Ela checa o horário porque está ali mesmo? Prometeu que viria e dessa vez veio Agora sua irmã está falando essa é a casa dela e sua irmã adora o momento em que é a única com a palavra na mão na cara nas pernas ela a passa nem hidratante luminoso e se levanta para ficar maior que todos e dar sua declaração especial sobre aquela noite que é bem típico dela 

Ser o centro das atenções e guiar toda a conversa para o que ela quer falar

Sua irmã possui quase uma década a mais  mas é impossível ter uma conversa séria como uma pessoa normal talvez porque ache que o normal é algo onde sua irmã baseia todo seu senso de identidade isto é quebrar o normal doe a quem doer e todo momento vira um episódio um Episódio solto onde foi a anfitriã Isto faz bem ao seu discurso

E de repente é como se fossem feudos diferentes espécimes de baleias diferentes e tudo que pode fazer é ficar ao alcance da vista porque qualquer conselho qualquer palavra parece que não chega e não é devolvida

E no fim somos isso a insistência dos corpos que ficam e se vão e por enquanto ela fica

Ela é tão autocentrada é isso a dor como uma desculpa o poço de petróleo em seu próprio punho isto não te dá desculpa isto é egoísta Ela é tão passional

E de repente vem flashes de sua infância e é como se sua irmã estivesse como agora sempre em pé muito muito alta com uma cerveja na mão e gestos de mãos muito bem trabalhados e uma retórica impecável como de um velho professor e ativista dizendo como ela tinha que escolher os livros de borracha para ler no banho como era o jeito certo de fazer contas de matemáticas ou organizar os ursos de pelúcia como andar de bicicleta como selar a batata é o jeito ideal de preservar a batata e o sabor e a fome

Temos que preservar a fome este é o tipo de coisa que sua irmã falaria

Como Como Como

Embora ela tenha certeza que para outras pessoas a sua irmã apenas diga frases como

Você não entende a questão é que não existe jeito certo!

E era uma farsa tão cristalina

Tão absolutamente

Diamantica

Que poderia usar até mesmo no dedo aquela cena e todos todos notariam

Então em certo momento sua irmã fala alguma bobagem que ela pescou e ela diz ela se levanta e diz não é uma boa ideia morrer antes da mamãe e papai não é mesmo como quem realmente estabelece um acordo legal ao vivo

Com uma voz relativamente alta e uma altura relativamente maior por causa do tom de sua voz não usual

Sua irmã leva um susto e diz calma ninguém vai morrer

Não recebeu o memorando

Ninguém vai morrer

Embora estejamos aqui bebendo e escutando músicas pop ruim  e tenhamos passado a semana completamente nervosos a ponto de dar graças a deus que os pelos ainda insistem em estar em nossos corpos nervosos como um buffet de obsessões misturadas com curtidas e contas negativas no banco e recusas de currículo de emprego e pés na bunda do passado até o futuro e alugueis alugueis alugueis de tudo não so de casa

De carro

De trepada

Aluguel de piscina meu deus aluguel de rio de garrafinha de água

Ninguém vai morrer minha irmãzinha não seja tola apesar de hoje estarmos aqui em casa reunidos e amanhã poder durar dois dias ou um ano e eu ter que entregar o apartamento por falta de dinheiro ou futuro ou fuga ou perseguição

Estamos todos juntos porque ninguém vai morrer

Sim sim lá fora não há uma viva alma em circulação os táxis os trens os aviões parecem excluídos de uma piada ruim

Os bares fechados os restaurantes fechados os encontros fechados os trabalhos fechados as portas fechadas

Ninguém absolutamente ninguém


Porque lá fora o ditador virou dez e anda nas ruas

Porque o golpe foi consumado nessa tarde

Porque  não há mais algodão para as roupas e água e trigo para o pão e isto era para ser o futuro

Porque uma praga acabou com nossas plantações

Porque o Congresso foi fechado

Porque os robôs tomaram conta da administração do mundo

Porque fomos traídos pelos golfinhos os leões até mesmo os quatis nos traíram

Porque um fungo raro

Espalhou uma praga


Ou porque apenas precisamos de uma folga

Uma folga ela 

Pensa


A irmã dela não sabe quando parar

Parar Parar Parar Parar


Ela está errada claro vai morrer sim vai morrer gente e vai ser aos montes

Ela checa a hora de novo e suspira de novo e pensa em talvez apenas buscar uma cama para dormir


sábado, 17 de outubro de 2020

mulher em canto de foto

Embaixo de um sorrisinho de canto, quando a cabeça se abaixa levemente, sobre a mesa do café. O suspiro mais longo, uma palavra única depois de uma sentença agitada. Os olhos puxados para cima, como um gancho imaginário, enquanto fingimos escutar o barulho da rua mas escutamos apenas o barulho. O barulho que começa dentro, e se vai para os objetos. A ele delegamos a culpa. Estes são alguns momentos onde não falamos. Onde cabe o que não falamos. Mas onde a presença do que não falamos está ali, corpórea como o sol do meio dia, ocupando a mesa, resvalando nas bochechas. E mesmo assim sabemos, há algo a mais, sabemos. Sentimos com os dedos entre os músculos. Sua eletricidade. O escape.

Fico me perguntando quais foram estes momentos para minha mãe e meu pai. Se foram todos, durante a existência de nossa vida como família. Pelas manhãs, os feriados, os passeios, durante as brigas, durante as viagens, as reuniões do colégio, os almoços nos avós. Se era assim que começava na verdade o alarme tocar, o indicador do dia que vinha, da noite que findava. Se houve alguma circunstância específica quando eles quase falaram, quase saiu, deslizaram, naturalmente por pouco, não disseram. Ou onde, nas fricções dos limites, da impossibilidade, iam se confessar desesperadamente, passar a limpo, tirar de si, dividir conosco, com todos, o que ocorria dentro deles.

Às vezes penso que esses momentos eram na verdade todo nosso tempo juntos. E por isso parecia faltar alguma coisa, a não concentração total de um e outro, os meio sorrisos, os choros imperceptíveis, aquela sensação de algo a ser completado, do membro fantasma, do encaixe, de uma fenda. Como se isto pudesse explicar tudo. Seus rostos depois do trabalho, sua voz grossa ou doce na hora do lavar de pratos, do cortar a grama. Se quanto a chave do carro desaparecesse, ou um livro, ou a senha do cofre fosse esquecida, quem eles buscassem achar realmente fosse ela. E esta impressão que eu tinha, dos meus pais sempre à beira da porta, do medo infantil do abandono, deles nunca mais voltarem na verdade existisse por não estarem mesmo completamente ali.

Se você prestar bem atenção Aninha, estava lá sim. Nós não éramos os únicos para eles. Se você prestar bem, bem atenção, assim como eu fiz, estava ali o tempo todo. Uma história da qual nunca fizemos parte a não ser como testemunhas desavisadas. Meu irmão pegou o álbum de fotos e disse, viu? – e apontou para uma mulher loira, no canto de uma foto. Ali está. Esse era o dia do casamento de papai e mamãe, e a mulher aparece em uma gigante foto de família, com mais de trinta pessoas, quase saindo pra fora da fotografia. Ali está ela. É alta, seus olhos são curvados, como dois sorrisos, seus cabelos compridos louros quase cinzas. É bela, isto é inegável. Nas próximas fotos, a mulher quase sempre está lá, e em uma, os três dançam juntos. Papai e mamãe estão muito feliz, e dividem uma gargalhada no ar. Em outra, só com os três, mais silenciosa, os dois olham a mulher, que olha a câmera. E seus rostos tem a ternura espalhada nos mínimos detalhes. Nessa época, já estavam grávidos de ti, né Aninha? Você nasceu pouco tempo depois. Buscamos outros álbuns, e de repente, aquela mulher, antes sem nenhuma importante, mera desconhecida, começa a aparecer em todo canto. Teu aniversário de dois anos, o natal em Botafogo. A viagem a aquele parque nacional, no paraná, jantares de meio de semana, reuniões de amigos. Lá estão os três, lá estão nós cinco. Até que um dia, apenas não esteve mais.

Eu fiquei ali olhando meu irmão enquanto ele narrava não só minha vida, mas até mesmo, minha vida antes de mim. O que eu fico pensando Zé, é o que mais eles não nos contaram. Mamãe e papai tinham uma namorada, grande coisa. Eles se amavam ou não, se davam bem ou não. Grande coisa. Mas o que mais não nos contaram? Como ela veio? Por que foi embora? Quando eles foram felizes ou não? E o que isso tem a ver com a gente. Você acha que eram felizes? A gente é feliz até não ser mais, Aninha. Ele possui uma sabedoria natural, é sincero em sua brutalidade. Então porque não nos contaram? Eu acho que nós sabíamos, de certa forma. Eu acho que agora, deve ser triste tocar no assunto. Como contar o final de algo que tantas vezes ficou por ser dito? 

Eu olhava os olhos de meu irmão mais novo como quem observa a atenção de um monge. Estava sendo justa com minha fala? O que eu também não o havia dito, por medo ou vergonha? Ou talvez até mesmo, excesso de felicidade? Meu irmão é muito atencioso e inteligente. Não tem medo de tocar em qualquer assunto. Meu irmão nos contou que era gay quando tinha nove anos de idade e fracassamos totalmente ao tentar ajuda-lo porque ele simplesmente parecia não precisar de ajuda, não precisar de nós. Estava pronto para o mundo e o seu tempo de sobra usava para nos ajudar a lidar com o nosso. Ao contrário de mim, constantemente, e mais agora, contornada pelo medo de perdê-lo. 

Tive muita vontade de chorar, agarrar suas mãos, o agradecer por ele ser quem ele é. Eu queria encontrar meus pais naquele momento, dizer que os amo. Me senti quase que indigna. Dizer que eles amam o amor, apesar do que aconteceu, que não sei, que eles tentaram, e acredito terem tentado de tudo, e que sinto que essa tentativa tinha a ver conosco também. E que tinha certeza que foi isso que fez o Zé ser quem ele é, não eu, talvez, se ainda der tempo, talvez um dia. 

Vontade de correr atrás dessa mulher, dessa desconhecida que por tantos anos, noites e manhãs, estava em nossa casa mesmo sem sabermos, estava nos objetos, no alinhamento dos quadros, no sabor das torradas, estava nos destinos das viagens, no sorriso de minha mãe, no bom humor ou no ressentimento de meu pai, e vice-versa, na tinta da parede, na coluna do telhado, estava no nome de nossos cachorros, no click por trás das câmeras, nos motivos do trabalho, no amor de meus pais, nos livros e filmes, no carinho dos cabelos de meu pai e minha mãe e portanto em nós também. 

De saber quem ela era, como está, se está viva ou não, se não quer voltar, dizer que sentimos sua falta, vontade de agradecê-la. De implorar. De dizer, eu também sei ser sombra. Depois pedir desculpa, se ela encarar mal minha expressão. Ou explorar mais o assunto, se houver um alívio em forma de abertura. E de quem sabe, longe de papai, mamãe e do Zé, só para ela, quem sabe, eu poderia dizer. Eu não teria a vergonha de finalmente admitir. E eu perguntaria, é aqui então, que vivemos? Os fantasmas? Ao que ela diria, se estivesse viva, se estivesse convidativa, se tivesse um bom humor, Não, não é, esta é nossa sina, estamos sempre em um lugar e em outro, em todos e em nenhum. Mas escolhemos, sempre escolhemos, eu sei, a relataria, e tão pouco importaria mais os outros. Seríamos apenas nós duas.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

o falecido

Os três se chamavam Raul. O pai nunca perdoou a mãe por ter dado aos filhos o nome de seu primeiro amante. Rafael, ele está morto, morto, Rafael, dizia ela nas poucas vezes que tocaram no assunto. Rafael tinha lá suas dúvidas. Nunca viram o corpo, nunca viram um documento, nunca falaram com alguém da família para saber se havia ou não ido para o depois da vida. Como se sabe se um morto se foi realmente? Depois do trabalho gostava de ficar na rede, tomando café, observando os meninos brincarem. Gostava muito do mais novo, tinha seus olhos, o chamavam pelo apelido de Zinho, para não confundir. O do meio era Rá, nem o deus egípcio do sol, e o mais velho, Raul mesmo. Por um tempo, pensou de tentar uma próxima gravidez, talvez viesse uma mulher. E aí botaria o nome de sua mãe, não de outra mulher porque nunca houve mulher como Sônia, Sônia sempre foi única, e também, tampouco é vingativo. Mas a ideia de dar a luz a mais um Raul no mundo o dava coceira nos ossos. Por dentro. Ao longo que as crianças iam crescendo, ia atrás das antigas fotos do Raul, o verdadeiro. Comparava seus rostos, suas simetrias. Talvez Sônia tivesse tentando recolocar Raul no mundo, a partir de sua própria barriga, vai saber. Talvez ele fosse apenas um meio para isso. Aos amigos dizia que Raul era o nome de seu avô e o nome dos meninos era promessa antiga. Com promessa não se brinca. Só sua família sabia a verdadeira história que o cartório não conta. Os irmãos riam de sua cara, a mãe sentia pena, sabia o quanto sofria. É só um nome, ela dizia, tentando espantar o resto dos familiares. Tu és o pai dos Rauls e isso é tudo o que importa, eles te obedecem, te adoram e te seguem. E isso é tudo. Este comentário da mãe o trouxe uma nova perspectiva. Desde desse dia o rancor se transformou em uma forma diferente de carinho com o falecido, uma outra filiação. Sentia-se o rei dos quatro, de todos os Rauls.