Foi o dedo dele que o trouxe aquele mundo. Era redondo, e extremamente separado dos outros dedos do pé, como se tivesse problema de sociabilidade ou vontade própria. Ou como quisesse fugir. Mas o importante não era o que o diferenciava, mas o que o unia. Era o mesmo dedo que meu pai possuía, que era o mesmo dedo de meu avô. Algo que só fazia sentido enquanto todos estavam reunidos, e quando separados, parecia uma pequena aberração da forma humana. Como se houvera duas pessoas a dividir cada pé. Um desenhista cansado.
Eu não era nascida. Mas minha avó conta que trouxeram o menino em dia de Cosme e Damião. Como se fosse um pacote de doce, como se o doce fosse a cura, foi isso que pensou minha avó, ainda deprimida pela morte do marido. Ainda assim não se deixou convencer. Recebeu a criança por desespero, a colocou no centro da sala, em cima do sofá, e a examinou como um joalheiro em uma investigação prolongada. A mãe havia morrido no parto, a vizinha trouxe a criança, muito quieta, a ponto de só por isso duvidar que era filha de meu pai. Não havia intenções de dinheiro, não havia interesses às claras. Minha vó examinou cada pedaço do pequeno até chegar nos dedos do pé e ali tinha certeza, era seu neto.
Segundo meu pai, os dedos de nossa família nem sempre foram assim. Foi depois que meu avô foi para o quartel. Não conseguiu fugir do país a tempo, era o início da ditadura militar. Pior do que o colocar na cadeia os militares o colocaram dentro do quartel, antes de entender tudo que estava acontecendo, aténs de ter idade para ler livros, estudar, conhecer gente, ir a congressos clandestinos, participar de partidos ilegais, quando tudo era apenas uma raiva sem nome. De noite, nos confins da fronteira, no extremo sul, ele e seus amigos viviam uma vida dupla. Contra o inverno eram peões livres, sabiam usar a lenha, cultivar a comida, sabiam reconhecer os animais e usar o frio ao seu favor. Nas leis do quartel tinham dono e tinham um corpo em que se hospedavam, no máximo. Em algumas noites conspiravam. Tinham um rádio onde ouviam em castelhano as notícias vindas da argentina e Uruguai. Os governos de lá ainda não tinham caído e a rádio pirata tentava ao máximo denunciar crimes a partir de histórias que todos conheciam. João, Pedro, Afonso, dizia a rádio. Todos conhecem no Brasil um João, um Pedro, um Afonso. Como saber se não esses que se encontram presos? Como viver com a dúvida? Meu avô e seus amigos decidiram tentar escapar para o Uruguai mas na primeira tentativa foram pegos. Foram deixados no meio do campo por semanas sem água, comida, no frio do inverno subtropical. Dormiram em covas abertas de defuntos em cemitérios abandonados, se alimentaram de pequenos caramujos. Quando enfim acharam que tinha acabado tudo, os soldados que nunca haviam lhes perdido de vista voltaram com a última lição. Como vocês são um grupo, disse um tenente, vão sofrer com um grupo. Um levou uma surra na cabeça, outro teve as mãos deformadas, outro os ombros detonados. Meu pai, teve os pés massacrados. Se juntar todas as partes avariadas temos um morto completo, riu um dos cabos compreendendo a mensagem do tenente. Sempre em um grupo há um morto. Todos igualmente haviam perdido algo. Depois disso, foi dispensado por questões de saúde.
As irmãs de meu pai riam quando ele dizia que o soldado passou de pai pra filho. Depois de ter os pés torturados, com sua pisada levemente torta, seu filho nasceu com a mesma deformação que agora tinha. Para a família era uma coincidência infeliz, mas uma lembrança, de que meu avô tinha sobrevivido. Que a família era forte, um sinal divino, abençoado. Não era, como estava certo meu pai, uma herança passada automaticamente, como se parte de meu pai tivesse começado a nascer diante daqueles cabos aturdidos e sanguinários. A genética não explicava este absurdo. Não fazia sentido. Era impossível.
Meu pai não recebeu bem meu irmão a primeira vista. Estava com um certo medo, medo do julgamento, medo da família. Ele não sabia ao certo nem de qual mulher o menino tinha vindo. Dessa forma, demorou um certo tempo até descobrir. A partir disso, se afeiçoou mais a ele, amor que cresceu aos poucos. Com o passar do tempo o menino virou sua maior felicidade. Levava ele para mostrar aos colegas do trabalho da fábrica, nos encontros com outras mulheres, tirava fotos sem parar. Virou sua maior conquista.
Depois de um tempo conheceu minha mãe, ela era enfermeira em um posto de saúde. O menino tinha uma febre que não baixava. Minha mãe recebeu o menino de peito aberto como se fosse seu próprio sangue. Era como um pequeno adulto, muito educado, muito quieto, mesmo quando doente, era uma doença imperceptível que apenas os mais chegados poderiam notar, com certa dificuldade.
Quando meu irmão fez três anos meus pais começaram a ficar preocupados. A criança ainda não falava. Nem mamãe, nem papai. A criança não falava nada. O levaram a médicos, especialistas. Nenhum conseguiu encontrar o motivo. Em sua fisiologia tudo estava bem, era saudável de fazer inveja. Isto começou a incomodar meu pai. Ele tinha medo de isto ser uma espécie de castigo. Algo nele intuía que aquilo não iria melhorar. Começou uma obsessão. Foram contratados pedagogos, fonoaudiólogos, neurologistas, todo tipo de especialista. Linguistas. Todos métodos de alfabetização conhecidos foram aplicados. A criança se recusava a falar uma palavra qualquer. Foi a essa altura que vim ao mundo. Como um pedido íntimo de meu pai e minha mãe de que as coisas fossem normais.
Meu irmão era como qualquer outra criança. Poderia vivenciar a tristeza e felicidade em seu ponto mais alto, sem amarras. Em puro êxtase. Era uma criança divertida, inteligente, cheia de energia. Mas não falava conosco. E isto não o preocupava. A mim tampouco. Meu irmão veio antes de mim ao mundo e para mim ele era o mundo que eu conhecia. As vezes sentia que vê-lo já era todo aprendizado que eu precisava. Queria ensinar a ele nossa língua mas a verdade é que meu irmão não precisava de nada, nunca precisou. A medida que ele crescia o verdadeiro problema era meu pai. A não expressão desejada de meu irmão virou sua vergonha. Ele sonhava compartilhar com ele as histórias que ouvia de seu avô, do jeito que foram contadas. Usar as mesmas expressões, até ouvir de sua boca os mesmos xingamentos. De falar palavras que só eles entenderiam o resultado. De ensinar o nome das plantas, das constelações, da comida, as lendas, assim como seus ancestrais chamavam.
Um dia, meu irmão estava mexendo na TV a cabo. Deveria ter no máximo oito anos. A essa altura já frequentava uma escola. Entendia tudo mas não se comunicava. Ele parou em um canal estrangeiro, TVE. Os apresentadores falavam rápido de forma ruidosa. Neste momento escutamos uma voz estranha vindo da sala. Lembro que cheguei primeiro, era calor, e meu corpo estava melequento, sujando o piso completamente e tudo cheirava a corpo, fungos, bactérias, fermentação, misturado com as flores da estação de nosso bairro. Meu irmão começou a falar comigo mas eu não o compreendia. Algumas palavras saltavam, como a palavra campeonato. Olhei a TV, homens e mulheres surfavam em uma ilha do Caribe, mas não conseguiam entender o que diziam. Meu irmão falava normalmente como se tivesse falado a vida toda. Mas falava em outra língua, falava em espanhol.
Não fez grande caso, chegou na cozinha e perguntou o que comeriam mais tarde. Minha mãe levou um susto. Acho que estava falando português mas como nunca tinha falado antes, no início, saia meio esquisito mesmo. Lágrimas escorriam de seus olhos de felicidade. Depois de um tempo a mostrei a televisão. Estes momentos onde os filhos ainda crianças ensinam coisas óbvias aos pais são os momentos mais preciosos da vida para quem sabe acolher. Mas a maioria não sabe. Minha mãe diante da loucura daquela situação decidiu não entender apenas comemorar com o que foi dado. A altura que meu pai chegou em casa, ela já havia comprado um dicionário de português-espanhol. Quando o menino pediu para “cenar”, ela já o tinha na cozinha, e entendeu rapidamente que o menino queria já a janta. Nada nele tinha mudado mas lá em casa tudo estava diferente.
As mulheres de nossa família pareciam não se importar. Não precisavam de explicação. Não precisavam que o neto o filho ou o irmão falassem a mesma língua que elas. Ele decidiu falar sua própria língua. Poderia um dia falar outras. Mas a língua de nossa família, ou se recusava, ou era incapaz de aprender. Incapaz até mesmo de escutar. Minha mãe foi a que mais rápido se dedicou aos estudos. Contratou um professor para toda família. Meu pai se recusou. Para ele era uma prova de que seu filho o ignorava. Que não o amava. Que era de qualquer coisa, ou situação, menos dele. Era como se não tivesse um filho. Ao longo do tempo começou a ficar muito calado. Quando se aposentou, e se aposentou muito cedo, passava os dias como um fantasma pela casa enquanto todos nós falávamos o castelhano, vivíamos uma vida normal. Não era um castelhano com acento argentino, ou chileno, caribenho ou do sul da Espanha. Era um castelhano com nosso acento. Uma língua feia, dizia meu pai, rude e distante. Uma língua que mesmo que se soubesse teria decidido esquecer. Embora claro, já saibamos, seja impossível esquecer uma língua. Impossível esquecer mas bem possível não aprender.