sábado, 17 de outubro de 2020

mulher em canto de foto

Embaixo de um sorrisinho de canto, quando a cabeça se abaixa levemente, sobre a mesa do café. O suspiro mais longo, uma palavra única depois de uma sentença agitada. Os olhos puxados para cima, como um gancho imaginário, enquanto fingimos escutar o barulho da rua mas escutamos apenas o barulho. O barulho que começa dentro, e se vai para os objetos. A ele delegamos a culpa. Estes são alguns momentos onde não falamos. Onde cabe o que não falamos. Mas onde a presença do que não falamos está ali, corpórea como o sol do meio dia, ocupando a mesa, resvalando nas bochechas. E mesmo assim sabemos, há algo a mais, sabemos. Sentimos com os dedos entre os músculos. Sua eletricidade. O escape.

Fico me perguntando quais foram estes momentos para minha mãe e meu pai. Se foram todos, durante a existência de nossa vida como família. Pelas manhãs, os feriados, os passeios, durante as brigas, durante as viagens, as reuniões do colégio, os almoços nos avós. Se era assim que começava na verdade o alarme tocar, o indicador do dia que vinha, da noite que findava. Se houve alguma circunstância específica quando eles quase falaram, quase saiu, deslizaram, naturalmente por pouco, não disseram. Ou onde, nas fricções dos limites, da impossibilidade, iam se confessar desesperadamente, passar a limpo, tirar de si, dividir conosco, com todos, o que ocorria dentro deles.

Às vezes penso que esses momentos eram na verdade todo nosso tempo juntos. E por isso parecia faltar alguma coisa, a não concentração total de um e outro, os meio sorrisos, os choros imperceptíveis, aquela sensação de algo a ser completado, do membro fantasma, do encaixe, de uma fenda. Como se isto pudesse explicar tudo. Seus rostos depois do trabalho, sua voz grossa ou doce na hora do lavar de pratos, do cortar a grama. Se quanto a chave do carro desaparecesse, ou um livro, ou a senha do cofre fosse esquecida, quem eles buscassem achar realmente fosse ela. E esta impressão que eu tinha, dos meus pais sempre à beira da porta, do medo infantil do abandono, deles nunca mais voltarem na verdade existisse por não estarem mesmo completamente ali.

Se você prestar bem atenção Aninha, estava lá sim. Nós não éramos os únicos para eles. Se você prestar bem, bem atenção, assim como eu fiz, estava ali o tempo todo. Uma história da qual nunca fizemos parte a não ser como testemunhas desavisadas. Meu irmão pegou o álbum de fotos e disse, viu? – e apontou para uma mulher loira, no canto de uma foto. Ali está. Esse era o dia do casamento de papai e mamãe, e a mulher aparece em uma gigante foto de família, com mais de trinta pessoas, quase saindo pra fora da fotografia. Ali está ela. É alta, seus olhos são curvados, como dois sorrisos, seus cabelos compridos louros quase cinzas. É bela, isto é inegável. Nas próximas fotos, a mulher quase sempre está lá, e em uma, os três dançam juntos. Papai e mamãe estão muito feliz, e dividem uma gargalhada no ar. Em outra, só com os três, mais silenciosa, os dois olham a mulher, que olha a câmera. E seus rostos tem a ternura espalhada nos mínimos detalhes. Nessa época, já estavam grávidos de ti, né Aninha? Você nasceu pouco tempo depois. Buscamos outros álbuns, e de repente, aquela mulher, antes sem nenhuma importante, mera desconhecida, começa a aparecer em todo canto. Teu aniversário de dois anos, o natal em Botafogo. A viagem a aquele parque nacional, no paraná, jantares de meio de semana, reuniões de amigos. Lá estão os três, lá estão nós cinco. Até que um dia, apenas não esteve mais.

Eu fiquei ali olhando meu irmão enquanto ele narrava não só minha vida, mas até mesmo, minha vida antes de mim. O que eu fico pensando Zé, é o que mais eles não nos contaram. Mamãe e papai tinham uma namorada, grande coisa. Eles se amavam ou não, se davam bem ou não. Grande coisa. Mas o que mais não nos contaram? Como ela veio? Por que foi embora? Quando eles foram felizes ou não? E o que isso tem a ver com a gente. Você acha que eram felizes? A gente é feliz até não ser mais, Aninha. Ele possui uma sabedoria natural, é sincero em sua brutalidade. Então porque não nos contaram? Eu acho que nós sabíamos, de certa forma. Eu acho que agora, deve ser triste tocar no assunto. Como contar o final de algo que tantas vezes ficou por ser dito? 

Eu olhava os olhos de meu irmão mais novo como quem observa a atenção de um monge. Estava sendo justa com minha fala? O que eu também não o havia dito, por medo ou vergonha? Ou talvez até mesmo, excesso de felicidade? Meu irmão é muito atencioso e inteligente. Não tem medo de tocar em qualquer assunto. Meu irmão nos contou que era gay quando tinha nove anos de idade e fracassamos totalmente ao tentar ajuda-lo porque ele simplesmente parecia não precisar de ajuda, não precisar de nós. Estava pronto para o mundo e o seu tempo de sobra usava para nos ajudar a lidar com o nosso. Ao contrário de mim, constantemente, e mais agora, contornada pelo medo de perdê-lo. 

Tive muita vontade de chorar, agarrar suas mãos, o agradecer por ele ser quem ele é. Eu queria encontrar meus pais naquele momento, dizer que os amo. Me senti quase que indigna. Dizer que eles amam o amor, apesar do que aconteceu, que não sei, que eles tentaram, e acredito terem tentado de tudo, e que sinto que essa tentativa tinha a ver conosco também. E que tinha certeza que foi isso que fez o Zé ser quem ele é, não eu, talvez, se ainda der tempo, talvez um dia. 

Vontade de correr atrás dessa mulher, dessa desconhecida que por tantos anos, noites e manhãs, estava em nossa casa mesmo sem sabermos, estava nos objetos, no alinhamento dos quadros, no sabor das torradas, estava nos destinos das viagens, no sorriso de minha mãe, no bom humor ou no ressentimento de meu pai, e vice-versa, na tinta da parede, na coluna do telhado, estava no nome de nossos cachorros, no click por trás das câmeras, nos motivos do trabalho, no amor de meus pais, nos livros e filmes, no carinho dos cabelos de meu pai e minha mãe e portanto em nós também. 

De saber quem ela era, como está, se está viva ou não, se não quer voltar, dizer que sentimos sua falta, vontade de agradecê-la. De implorar. De dizer, eu também sei ser sombra. Depois pedir desculpa, se ela encarar mal minha expressão. Ou explorar mais o assunto, se houver um alívio em forma de abertura. E de quem sabe, longe de papai, mamãe e do Zé, só para ela, quem sabe, eu poderia dizer. Eu não teria a vergonha de finalmente admitir. E eu perguntaria, é aqui então, que vivemos? Os fantasmas? Ao que ela diria, se estivesse viva, se estivesse convidativa, se tivesse um bom humor, Não, não é, esta é nossa sina, estamos sempre em um lugar e em outro, em todos e em nenhum. Mas escolhemos, sempre escolhemos, eu sei, a relataria, e tão pouco importaria mais os outros. Seríamos apenas nós duas.