terça-feira, 13 de junho de 2017

o beijo

Você segura a minha mão como um navio pesqueiro, uma rede assustada e ágil, bem na hora que o ator principal tropeça no palco e retoma o fôlego. Eu rio, eu preciso de minhas duas mãos para rir, aquela que está com você sua como um peixe que debate-se.

A peça acaba, os atores vão pra frente do palco, você me larga levanta e aplaude e eu ergo meu pequeno peixe soluçante, o esfrego nos olhos, o dou de beber para que viva pouco tanto a mais, o uso para arrumar os cabelos. Mais tarde você diz que adoro o meu cheiro e eu sorrio criminosa de minha pequena verdade.

Você diz que está feliz, você está feliz por me conhecer.

Em lembro que isto é um restaurante e peço qualquer tipo de fritura porque já temos essa intimidade de comer com as mãos. Você identifica as lajotas, os pequenos tijolos, dá um murro neles, chega mais perto. Eu retraio. Você pode ser assustador quando sabe o que quer porque na maior parte do tempo parece que não sabe.

Eu falo de Baudrilliard, eu tento falar do seu trabalho, da sua dissertação. Eu não sei bem o que estou fazendo aqui e não decidi como quero gostar de você. Normalmente faço isso quando durmo mais de 12 horas, e lá pela tantas, em uma banca de jornal ou em um avião maria-fumaça a redigir no ar, escolho e entendo alguns papéis.

Mas você não quer saber e bagunça o meu cabelo.

Ok, talvez você seja o tipo da pessoa que faz isso. Eu penso que posso lidar com isso, uma pessoa que faz isso e vá embora.

Você diz que está feliz mas que é uma pena.

Eu retrocedo meus cavalos e silencio a artilharia. Eu penso em todos os jogos que venci por não saber as regras direito. Eu penso sobre ser figurinista e como nunca poderei de fato ser figurinista, que eu sempre erro a forma na ocasião. Algo que você vai dizer pode suar injusto, você é muito poderoso neste momento.

Você diz que tudo bem, e pede para que eu entenda. Você gosta de mim. E não sabe porque. Mas tem algo que preciso saber. Você vai morrer em breve, provavelmente em um acidente de trânsito, provavelmente indo para cachoeirinha visitar as tias, provavelmente você diz, mas na verdade arrisca até mesmo uma hora.

Você ri e logo percebo que essa é sua maneira de ser desesperado e essa é a pior maneira para qualquer coisa porque faz alguém perder os olhos quando te ouve. E só se concentrar em pequenas alucinações.

Eu digo que isto é besteira. Que você é louco. Eu te xingo porque essa é minha nova maneira de mostrar que me importo.

Você diz que tudo bem. Que não tem problema. Você sabe que é jovem mas se sente satisfeito. Sente que fez tudo que queria, que tratou bem aqueles que amava, que amou o suficiente.

Eu pergunto como você sabe disso.

Você pede uma cerveja. Espera uma menina de longos cabelos e com a cabeça levemente raspada a trazer para começar a falar.

Eu gostaria que a menina senta-se aqui também. Eu gostaria de ser duas, ou tentar ser duas, para compreender o que você realmente queria dizer.

Você bebe metade do copo. Diz apenas que sabe. Não é espirituoso, nem religioso. Não é um médium nem nada parecido. Só sabe disso. E tudo bem saber. Você levanta um pouco a voz e em seu rosto há uma paisagem completa. Você usa cada espçinho do seu rosto para tentar me convencer em aceitar um absurdo, a praticamente herda-lo. Então diz que me contou porque na queria me vê triste ou mal, porque achou mais justo me avisar. Porque de algum modo se importa comigo.

Você fala da sua morte como alguns homens falam de uma harley davison. Os detalhes do motor, as cilindradas, o ascendimento. A faísca. Você aceitou fácil esta idéia e por isso e pelo resto há poderes no mundo cedidos apenas a você.

Por uns segundos te olho em silêncio. Você todo cheio de si, no controle de suas ações, dono de sua morte. Eu te odeio um pouco neste momento, o que você sabe, o que você não sabe que você sabe. E mais ainda: a sua loucura absurda de saber que sabe de coisas assim.

Você é maluco eu te digo.

Nesse dia vamos para seu apartamento. Ficamos lendo, vendo fotos antigas que você num surto de nostalgia decidiu me oferecer como um modo de acelerar nosso conhecimento um do outro, neste pequeno tempo que segundo você nos resta.

Você dorme no sofá e eu durmo em sua cama.

Na semana seguinte nos vemos sem querer na faculdade. Você desmarca todos os encontros. Eu sei que você não está bem. Você não sabe. Um dia nos fechamos sem querer, temos o mesmo orientador de pesquisa. Na sala é constrangedor olhar para você, o orientador, e aquela pequena loucura que você me contou há dias atrás.

A pequena loucura é um musgo preto pendurado no teto que sempre pinga quando alguém resolve falar.

Depois de meia semana você morre.

Você estava indo para o supermercado para seu pai que não andava se sentindo bem.

Você pegou o retorno errado. Mas depois pegou o certo.

O carro da frente mudou de pista.

Foi como um beijo.

As mandíbulas, no encontro forçado, se quebraram e retorceram. O rosto tremeu, os dentes quebraram.

A línguas ficaram entre os parachoques, ainda, uma dentro da boca de outra.

O motorista do carro da frente também morreu, vocês morreram juntos ao mesmo tempo, e isto os mantinha muito próximo no mundo.

Foi rápido, indolor. Mas seu corpo se perdeu dentro da boca de metal. Os bancos, o aço, a ferrugem do sangue.

Eu não vi no jornal. Eu não lembrei do dia que você tinha me dito. Eu te invejei por ser sábio ou maluco o suficiente. Por ser suficiente para alguma coisa.

Então fui pra aula e alguns colegas contaram para mim. Perguntaram se eu te conhecia. Se eu te conhecia, céus.

Você está morto, mas não realmente.

Eu ouço sua risada quando escovo os dentes ou tento ler um anúncio no outdoor por puro tédio. Eu sinto você rindo como outro outro relógio. Um outro dia. Um outro lugar.

Era por isso eu você estava tão tranqüilo eu penso.