terça-feira, 20 de setembro de 2016

a escultora que não se escondia

“tem a pele nua” havia me dito Rita.

“não é todo mundo que é assim?’”

“não”, me disse ela.

confesso que não entendi o que aquilo gostaria de significar.

arrancar sentidos de Rita é como tentar escovar uma floresta. com suspiros.

quando enfim conheci sua amiga, tive impressão que deveria vestir camisas GG. não sabia onde colocar minha surpresa, não havia como me esconder. fiquei pasmo, atropelado por um bando de pássaros que esnobaram o pouso em meu rosto. mas porque haveria de ficar assim? ficou claro minha ineficácia em lidar com sinceridades de perto.

sua pele era transparente.

impossível o esconderijo. podíamos enxergar tudo. e não ligava para isso. na ocasião estava de regata, braços a mostra apesar de tudo. parecia estar confortável com sua situação. a primeira coisa que vi foram as veias grossas. eu podia observar  as artérias trabalhando. sem cessar, pulavam e descansavam num segundo. era como um relógio nu. a cumprimentei com um aperto de mão. não foi fácil. ruía. sem muita força segurei seus dedos. podia ver exatamente onde estava tocando. engoli  um susto. um assombro quente que usei para navegar. apesar de tudo, sua pele, era quente.

sentamos numa mesa, no lado de fora do café. ela, eu, Rita e França. ela pediu um suco de laranja. a medida que o bebia, eu acompanhava o curso do líquido laranja correndo pelo seu corpo. por algum tempo, ela era uma mulher com um risco laranja atravessado.

aquilo preencheu os próximos quatro anos meus de pura fascinação. laranja. tive vergonha de me prender por muito em seu destino. tropeçar no peito, cair nas bochechas. França tomou o papel de provocar assuntos na mesa. a elogiava. ao que entendi, era escultora. “das boas”, pincelava Rita. ela era um quadro vivo. uma expedição aberta. me pus a rastejar em seus detalhes quando estava imersa em distrações. o enlace dos músculos do pescoço me fascinava. a cartilagem no nariz, um tímido mas de personalidade, me ensinava a entender mais as árvores. o mais incrível era esse contraste: os olhos. os olhos eram a única parte de seu corpo que era opaca. não conseguia me dedicar a eles sem ganhar um arrepio a parasitar minha coluna.

Rita insistia de a tratar como sua nova descoberta. assim como França, a abraçava, arquitetava bons comentários, a protegia de qualquer males exteriores. eles já haviam decidido protege-la. de fato, a primeira vista, parecia um tanto frágil pela sua condição. mas isso me parecia um engano pronto. Rita fazia propaganda de mim para a mulher.

“você precisa vê-lo tocando. Heitor é músico, você sabia?”

a mulher só sorria. quando sorria era como se continentes rígidos abrissem grandes fendas na rapidez da viagem da luz. ou como se o tempo fosse um grão, passível de ser aspirado ou levado por qualquer direção de impulso de ar. tudo parecia possível. ela dizia pouco. mas nem precisava buscar muito as palavras. sem perceber falava de corpo inteiro.

depois da passagem, do choque, e talvez uma ponte aguda de repulsa, ela começou a me dar penteados novos. comecei a imaginar meus dias com sua presença. me vi bonito. de fato, gostaria de tocar algo para ela. a colocar perto de meu piano, com pouca roupa, e observar como seu corpo reagia ao som de Schubert, quem sabe. o que será que a música fazia em seu peito, observar a velocidade do sangue em seus túneis submersos, verdadeiras coreografias da pele, talvez ter a sorte de olhar seu coração desvairar em uma dança solo, enquanto Lazarus está sendo tocado por mim. poderia ver o que eu faço com seu corpo.

enquanto França fazia piadinhas recheadas de notas biográficas e explicava como aquela mulher fora parar em nossa cidade, em nossa mesa, em nossa memória hemorrágica, enquanto Rita pedira um sorvete de creme, e a mulher comia devagar um sanduíche de cogumelos (eu podia ver os cogumelos, agora pasta de cogu, viajando pelo seu esôfago, algo que qualquer outra mulher cobriria com lenços e interruptores de escuro), me batera em cheio uma vontade devastadora de dormir com essa mulher. de trepá-la.

fudê-la.

não consegui parar de pensar nisso. não consegui me concentrar nos assuntos da mesa, ficava calado tentando me despersuadir dessa manifestação que já se denunciava obsessiva. precisava fazer sexo com ela. observar as mudanças de seu corpo, os músculos se enriquecendo enquanto eu amaciaria seus ossos, observar seu pulmão trabalhando rápido enquanto eu adentraria dentro dela devagar e cada vez mais forte, cada vez mais pulmão, balões de festa. observar a trajetória do grito em seu interior.

enxergá-la por todos os cantos.

eu queria quebrá-la.

depois observar os pedaços no chão.
um por um.

“Veneza”, Rita falava, “não está com nada. Maria Martins se fez foi depois de ir a Amazônia. precisamos levá-la imediatamente para o norte”. se desvencilhando dos braços de França, a mulher se continha. borbulhava pequenos sorrisos para confirmar que ouvira o que se falava naquela mesa. o tempo podia ser desacelerado acima de suas sobrancelhas.

“onde você nasceu mesmo?” perguntei a ela. mas não ouvi a resposta. a mulher nascia ainda, era possível observar.

minhas mãos em seu pescoço. como uma extensão de seus músculos. adjunto de anatomia. a tocando. a pesando aos poucos.

em algum lugar eu a bato. forte. como mármore. como a argila temperada. como a pedra branca que há tanto esta acostumada em seus dias em sua oficina, na qual toca, pela espátula, o garrote, a palheta, o martelo.

ao contrário de seus trabalhos ela não fica firme, não adquire contornos. cai no chão. se esparrama, se despedaça. recolho tudo que vejo. junto com uma corda. aperto firme, bato de novo. de novo. repito tudo e a penetro devagar, assistindo seu peito escandalizar. bater, em consonância. até a organização se desfazer. até os contornos se confundirem. tudo se misturar, da mesma cor, densidade. até tudo ficar homogêneo e não ser possível distinguir nada. como uma massa de bolo.

eu quero quebrá-la.

meu deus ela sabe disse. ela sabe e não fala nada. ela sabe e não me olha. não há nada que eu consiga esconder nesta mesa. por isto, e mais talvez, poderia fazer agora mesmo.

tem razão de me odiar. mas não odeia. se assim fosse odiaria o mundo inteiro. ela levanta o rosto para cima como quem processa alguma informação de última hora. usa os cílios como espanadores. usa o corpo todo para não dizer. fica em silêncio.

imagino se o som é o mesmo das coisas quando vistas.

eu quero quebrá-la até os ossos.

porto alegre, 2011.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

ex-namorada do novelista lê sua mais nova obra-prima enquanto em seu rosto crescem certos pelos malhados e bigodes

"então foi ele que matou meu gato"

diz a ex-namorada enquanto fecha o livro do novelista exatamente na página 97.

o novelista achava que ter segredos era quebrar segredos. a ex-namorada do novelista crê que quebrar segredos é a melhor forma de não ter mais nada com alguém.

"meu gato está agora para sempre meio morto, meio no livro. enquanto ele meio pobre, meio rico".

o que é um prêmio afinal? pensa a ex-namorada. ainda bem que existem os haters, pensa ela que quando recorda o número 97 esquece-se que já tomou banho. a ficção é o pesadelo do motor.

como falar a verdade para se vingar de alguém que já falou a verdade?

"houve uma época em que vivi com os bichos. hoje eles são mortos ou escrevem livros enquanto eu jogo minecraft".