Enquanto isso, além daquele tabuleiro de xadrez de pedra e madeira, tia Janaína arrancava os brancos do cabelo em frente a um espelho, a cachaça de minha mãe recém acabava, e se você estivesse lá, veria, seguindo em direção ao sofá e olhando para o tabletes de desenhos marroquinos, o que veria deitado no chão era Teófilo decidindo me deixar.
Assim, aos urubus que são as manhãs de solteira. Aos parques que são os finais de dia para um recém despiedado. Canta Canta menina, embaça essa vida, agarra ele enquanto o tempo boceja. Mais de Teófilo eu tenho, o camareiro da intranquilidade, o charme basco, o bom gosto para o exótico. De Teófilo eu tenho, as formas das pernas, na minha mão o encontro dos lábios, o relevo das bolas, senhoras bolas, inclusive o meu pescoço sambista de alegria, eu tenho é de Teófilo. Mais ainda do Teófilo exato Teófilo que decidiu me deixar.
Duas casas à esquerda.
De nada desconfiei daquele mirradinho. Sempre aprisionado nos românticos ingleses esquecidos pela gramática, pouco restava para o amor de realidades, que eu jurava, era todo meu. Falava pouco Teófilo. Sobre os planetas, dissertava quando se sentia mal-vindo em algum lugar, chá de moças, reunião anual da família, que pensava estava ligado por um papel amassado com carimbo de cartório. Sobre os etruscos, comentava para não discutir sobre vinhos, era difícil pra ele adjetivar a diferença entre um Taunat e um Pinot. Para não falar de si, beijava, me beijava, me beijava sempre.
Eu conquistava o rei.
Não lembro quem ganhou aquela partida de xadrez, não lembro quem nada. Apenas que no carro, Teófilo, que já estava decidido a me deixar, pensava agora em como me deixar. Eu ainda nada sabia, enquanto ele dirigia e pensava em elefantes, eu migrava para a paisagem dos próximos minutos, nós, na cama, num silencio recompensado pelo corpos. Mas talvez, pensando agora no interior daquele Clio 97, se eu quisesse, eu digo talvez, perceberia os olhos fixos ao volante, as frases curtas, as falhas na câmbio, o rosto avermelhado sem porquês nebulosos. Quis chegar logo em casa, disse algo sobre a sua cabeça que não entendi por estar ainda digerindo aquele filme de três noites atrás, que loucura, ser congelado e acordar cem anos depois, sim, é preciso prestar mais atenção no presente e ver mais Cassavetes.
Depois até pensei, deve ter sido difícil para o pobre tomar uma decisão assim, e agir, imagina depois de alguns dois anos de clara reciprocidade, de stop na terapia, de sobriedade das pequenas pílulas, botar tudo a perder e me mandar embora da sua vida. Deve ter encomendado coragem da Coreia do Norte esse garoto. Ainda mais eu, que tanto carinho cultivava com água da chuva, com vitaminas especializadas, amor e amor. Gostava de Teófilo porque ele não sabia ser outra coisa, e justamente por isso, tão legível como um travessão - no íntimo absoluto, pedra de minha ruína interior - eu sabia de tudo e absolutamente tudo tal como o primeiro pensamento de Teófilo decidindo me deixar.
Talvez por isso, mesmo com poucas as peças, o jogo virou tão rapidamente, eu com um olho no peão, outro na solução aquosa que era o corpo de Téo, esparramado no tapete musgo, como um aquário abandonado, quieto mas no reflexo nas paredes espichando os membros em desacordo, debatendo-se, como quem quer ser maior para enfrentar tal desafio, eu vi, seu pensamento se formando, eu estava na mão direita - e da direção do ombro uma o braço uma só frase se formava. Eu que vivi a clandestinidade, onde falar a palavra exata poderia dar o gesto da morte a minha família, desde criança aprendi a ler uma frase ainda em gestação, e no caso de Teófilo ela tentava nascer por todos os lados, os cantos, os orifícios, como um chafariz a marcar um importante momento histórico, eu, no caso a que me fui, você, Teófilo, a tudo presenciou.
E por todo o tempo, intimamente, guardei o segredo, até de mim mesmo, eu sabia que ele sabia, e esperava o retocar das situações, como uma acadêmica do silêncio, me divertia com sua falta de equilíbrio, seu mal-estar na hora de cozinhar, a risada forçada para as mensagens de texto. Como se estivesse, no pior cenário, por trás daqueles eventos, eu, nos bastidores, cega para o observador, atrás dos holofotes, eu a que agia, o deixando sozinho, absolutamente sozinho, sozinho, contudo tão e tão bonito que nem lembrou quem amei de verdade se foi Teófilo ou apenas o fim.
Finalmente quando ele disse o que disse, largando por todas as paredes a impossibilidade da volta, uma palavra é impossível de ser retirada, uma palavra impossível de ser retirada é o material de construção das barcas, que hora de vir Camões, que hora!, eu que me via tão dona do controle, do estádio, senti uma náusea, uma dor, como se eu o tivesse traído ao ter contemplado aquela agonia toda, Teófilo, está tudo bem eu disse, as portas no futuro serão grandes o suficiente para que as pessoas saiam juntas, de mão dadas ou não, mais juntas e nós nos preocupamos com o futuro, até os das portas, não sei se disse isto realmente, ou só pensei, mas o agradeci com um sorriso em cada mão, não sorrisos irônicos ou orgulhosos, mas um sorriso de agradecimento que só é possível com o corpo todo.
Eu conquistei o rei. E é só disto que me recordo.
23.12.2010