Você não sabe o que é chegar em um lugar e a única pessoa que você conhece morrer. Morrer de um absurdo, uma morte arremessada, uma morte soletrada por uma única bala em uma praça que parece determinada se asfaltar com sua cabeça. Quando Shaimma morreu eu estava em frente a arma que a matou mas a vi gritar e corri para a segurá-la por trás então ela se foi. Quando Shaimma morreu eu a vi dizendo com os olhos “eles querem nos devolver nossa terra em cima dos nossos corpos” eu quis dizer que não mas é feio negar quem está quase sem vida
quando Shaimma morreu eu tinha saído apenas para comprar geleia e pão e embora não saiba ler em árabe pude entender que todas as lojas estavam fechadas então vi a passeata, então vi Shaimma ainda viva – mas já morta porque o destino é imutável – sacudir seu braço para mim na esperança que o meu fizesse o mesmo e assim fossemos mais fortes mas não
quando Shaimma morreu eu tive todo o tempo do mundo para a socorrê-la, para achar o culpado, em menos de 5 minutos eu viajei do início ao fim da passeata, eu estava atrás e em frente ao cordão de isolamento, dentro e fora da embaixada, eu vi de cima a bandeira do Egito pegar fogo, vi as crianças jogarem pedras uma nas outras, um senhor de uns 70 anos se arremessado como um lençol pelo vento em direção ao muro, só que o vento era o muro, mas quando voltei com faixas, algodão e remédios, com a frase ‘o povo está do seu lado’ eu vi que na verdade tudo aquilo durara 10 segundos, que eu não tinha saído do lugar, de que Shaimma estava morta e eu só sabia disto porque estava vivo.
Sua cabeça em meu colo, seus olhos abertos. Em algum lugar dentro de Shaimma eu também morria para ela. Me concentrei, uma obrigação do desespero de conseguir ver além sua cortina marrom, sua íris impecavelmente inacessível, procurar dentro dela. Em algum lugar dela estávamos nós dois, há três semanas atrás na primeira vez que nos vimos no café Bourboun, a primeira vez
que vi Shaimma de verdade, ela e seu inglês suave e doloroso como um fóssil de um sabre, saindo devagar de sua boca enquanto falávamos do Brasil como quem mente já descobrir a resposta do mais minúsculo cadeado do mundo. Esta ou a vez que brigamos com um jornalista inglês, um tipo detestável, que cobria o oriente com a mesma roupa que uns usam para escalar os Alpes – bastou uns segundos para que ele defendesse a colonização inglesa – não bastou nada para eu ameaçá-lo com um tom de voz roubado (algum filme de ação ruim) e ali estava Shaimma imna, brava com os dois, mas calma o suficiente para segurar dois bastões de polônio com as mãos e ainda ter tempo de pensar.
Eu sabia que estes acontecimentos morriam dentro dela enquanto se ia e que um dia seriam apenas meus (quem em mim acreditaria?) eu precisava de Shaimma ima viva, eu vivo dentro dela, e neste momento nem pensei que aquilo em nada dizia ao meu respeito – estamos falando da ditadura, estamos falando da volta da teocracia, estamos falando de milhares de inocentes mortos pela raiva mais inóspita que agora foge nem pulga pelas ruas habitando principalmente os uniformes da guarda nacional.
Este foi o dia que o Egito não caía porque já estava no chão. Porque as covas já estavam abertas. Mas os muçulmanos não enterram seus mortos, eles queimam, e mesmo assim a sete palmos do chão, mesmo morto, mesmo jogados abaixo da terra ainda sempre é tempo para ser um traidor.
Isto importava para que?
Você não sabe o que é ir dormir, tirar a camiseta e pensar “há algo diferente aqui” e logo depois de alguns tonteios lembrar “isto é sangue”, tenho sangue na camisa, também nos sapatos, e não saber o que isto significa. Depois quem sabe, tomar um banho, e sentir pela primeira vez a pele ser a fronteira do ódio, não poder discernir ele da água se indo, por isso, nunca querer sair do banho
“Oi mamãe, eu estou ligando, bom, uma coisa terrível aconteceu, você deve estar dando aula ainda certo?, bom uma amiga minha morreu, na verdade ela foi assassinada, mas para todos ela simplesmente morreu, porque não importa, sabe foram mais de 20 pessoas, eu queria chorar mas sinto que chorar nestas circunstancias, neste país, é esvaziar algo que não é meu, que me é proibido, eu não quero ficar aqui mas também não consigo voltar, eu estou te ligando mas não queria que você me ouvisse, apenas me respondesse, quem sabe, quando a gente vê alguém morrer esta morte, de alguma forma ela é nossa? Devia ter insistido mais, não diga nada para papai, não quero que piore”
“Maid, é você? Que dia você vem para o Cairo? Você pode me buscar no hotel, simplesmente, bem, simplesmente eu não consigo sair daqui. Shaimma morreu hoje e não sei o que tenho a ver com isto mas meus ouvidos estão carregados com todos aqueles tiros, eles pesam como um guindaste para baixo, é terrível – lembro da foto dos enforcados em 79 no Teerã agora, meus ouvidos (...) você viu na internet? Garanto que não saiu nada nos jornais – ”
o segredo – descobri mais tarde – é simplesmente não tomá-lo.
Você deve estar achando isto um absurdo. Uma semana em um quarto de hotel. Sem tomar banho. No décimo quinto andar onde tudo que está abaixo é a visão do passado. Aquele que se esquece. Teve uma dessas noites, acordei com uma dor:meu peito direito doía e no espelho procurei a bala, que deveria estar ali, a bala de fuzil que era minha, e não de Shaimma, porque mudei de lado para ajudá-la e acabei matando com minha própria ausência. Talvez se Shaimma não tivesse me visto ela estaria longe daquilo, aquela pólvora engavetada com fome de nada, mais perigosa por isso. Talvez conheci Shaimma no momento que ela morreu – e todo o pouco que vivemos se fez tão maior, como um afresco que exagera em detalhes, e cada aresta vira uma porta bilionária, auto-reprodutora, e o movimento de suas batidas fosse uma pequena eternidade. Talvez a conheci apenas para a ver morrer assim da forma mais estúpida, sem direção, na minha frente – eu que nem devia estar lá – que não sei nada sobre as veias abertas, as cascatas arrombadas das veias abertas – mas mais principalmente eu que estou pouco me lixando
Você sabe que quando tinha 15 anos de idade descobri que tinha um tio mas não descobri o que era ter um tio – Ciro tinha um pouco mais que minha idade quando apanhou tanto, apanhou em todas partes do corpo simultaneamente, como se quisessem o expulsar de lá “seu merda puto comunista”, provavelmente meu tio soube que a vida tendia ao desaparecimento e descobriu isto em tentar diferenciar um ou outro rato de sua cela, como se isto significasse o único gesto da pluralidade, uma tentativa de conversar com os insetos que insistiam em se movimentar, de agradecê-los pelo enforcamento do tédio – até que um dia desapareceu e foi assim. “O Ciro fez tudo errado, teu tio era um idiota e pagou por isso, nós estamos aqui e inteiro” e ninguém fazia questão de falar porque era ainda a ditadura, e mesmo se não fosse, sua doce engenharia ainda respondia por algumas partes internas do corpo destas pessoas, meus parentes, quem diria “Meu tio se chama Ciro e está morto mas vocês estão vivos o matando ainda”. Você sabe o que é uma ditadura?
Você sabe o que a professor Gilberto nos disse no primeiro ano do ensino médio? A melhor coisa que já aconteceu neste país. Você sabe o que aconteceu com Igor? Foi expulso da aula por que mandou o professor tomar no cu. Eu nunca fui amigo de Igor. Eu que nunca fui amigo de Igor nenhum, mesmo eu filho de meu pai e talvez filho de Ciro, sobrinho de Ciro.
Tudo que Igor fazia não me dizia o respeito. Igor não sabia jogar futebol, não gostava de videogame, ia muito mal em matemática, em física. Uma vez Igor fez primeiros socorros numa professora, que enfartou ali na aula – no meio da oração subordinada, até hoje ficou faltando o ponto final daquela frase que no final estremeceu como feita por alguém que descobriu os dedos anteontem – Igor ajudou a tentar salvar sua vida isto eu lembro. Era parecido comigo, moreno, de pele escura, nós podíamos passar por parentes, mas talvez, sei lá: Igor foi estudar ciências sociais ou não, se formou em direito ou não, fez um mochilão pela America do sul ou não, Igor se filiou ao partido dos trabalhadores ou não – não sei, embora agora, me interesse
Porque estou tão sozinho e isto é tão verdade que gostaria de ligar para ele
“isto vai soar estranho, eu era aquele cara que sentava na quarta fileira à esquerda no colégio durante todo o ensino médio, sabe eu não entendia muito naquela época, aquela sua camisa lembra ‘god save the queen’ é clichê, hoje eu sei, mas me marcou muito eu não entendia, achava engraçado você um monarquista, um monarquista que manda o professor de história tomar no cu, de qualquer forma hoje uma pessoa morreu, uma pessoa morreu na pior circunstância do mundo, indiferente, alguém que poderia ter filhos, que poderia iniciar uma dinastia, que talvez pudesse colocar sua mão atrás do mundo e mudá-lo milimetricamente de posição, hoje uma pessoa que gosto morreu na minha frente e eu queria falar é com você, eu preciso falar é com você”
Faz mais de três anos que eu não volto ao Brasil, você sabe, Shaimma esteve no Brasil a pouco tempo – e ela falando de lá é tão engraçado, não soube se podia confiar. Shaimma me falando de São Paulo, Shaimma me falando que tinha odiado São Paulo, mas não conheceu São Paulo e sim o que ela viu no meio da rua, existe meio da rua em São Paulo – me disse Shaimma. “Os policias tem treinamento o pior tipo, eles souberam me chamar de puta em inglês, eles são bem treinados, é bonito sim ver 10 mil pessoas na rua, gritando, tocando instrumentos, vocês dançam e isto é engraçado porque isto, ora, isto eles não podem fazer”.
Shaimma era muito bonita e eu a admirava. Mas não a desejava, não era nada disso. A queria perto – a queria parte de mim, no fundo para me sentir melhor no fundo, no fundo porque precisava dela. Precisava de alguém que falasse árabe, precisava de alguém que fosse eu, que como uma rede de pesca tirasse as palavras do meu cérebro e as entregasse frescas e limpas para um comerciante para que eu pudesse pedir um prato que viesse sem carne. Precisava dela perto de mim porque eu sou uma criança e não sei nada da vida e ter alguém prestando atenção no meu sotaque faz os pés cravarem mais fundos mesmo quando inventamos de andar na vertical. Por algum breve tempo ousei pensar que ela pudesse me conhecer e tive medo
medo que ela soubesse que eu estava ali, que eu estava escrevendo sobre o que acontecia em sua cidade mas não me importava
Shaimma isto é um trabalho para mim e ver morrer ver viver é como a divisão dos dias e das noites do meu tipo específico de tempo, eu vejo a destruição e faço o absurdo de a mergulhá-la em um balde de bisturis, de recortá-la, de embaralhá-la, de escalá-la em uma história e depois mandá-la para longe – famílias vendo o jornal em suas casas do outro lado do mundo – os jornais
eu faço isto porque tenho raiva de todos, e isto tudo me é indiferente, eu mesmo vim de um lugar onde as armas vieram antes de apontar os dedos (estes que saíram de moda) e tudo que fiz foi me anestesiar ou ler Fausto, ler algo que me falasse da maldade verdadeira para que de alguma forma estivesse no controle e os curativos me fossem desnecessários
hoje é seu povo, amanhã é outro, faz mais de cinquenta anos que é seu povo, só estamos aqui durante um mês - e vamos embora – porque as pessoas se acabam em todos os lugares do mundo mas a paciência de quem assisti acaba sempre antes e este é o mundo dos vivos, são estes os tipos de vivos que nos pagam
Você sabe que eu me sinto uma merda. Quando olhei Shaimma nos seus olhos antes de eles apagarem tudo que já tinham visto e procurei ali dentro todos os chás que tomamos juntos, todas as conversas que tivemos, todas as vezes que a deixei em casa, que ela me ajudava a deixar meu entrevistado mais a vontade, que ela me ajudava com informações, com livros, quando ela me colocava nas histórias primeiro do que qualquer outro jornalista – tudo que eu estava procurando era rever estes momentos entender se ela percebeu em algum deles isto. Se ela me conheceu ou julgou, era muito esperta e sei que podia ser possível
Você sabe o que eu gostaria de ter dito. De ter dito quando ela morria. Queria ter podido falar de ti para ela. Queria poder falar que não era nada disso. Que eu a amava. Não exatamente ela mas o que ela representava.
Você sabe o que é se sentir uma merda?
Talvez você ache que você saiba. Mas se você morreu, se você morreu como morreu, foi porque venceu. Porque não conseguiu dar a eles nada do que queriam. Nenhum deles conseguiu entrar dentro de sua cabeça, atrás dos teus olhos, e enxergar tudo o que você viveu. Tudo o que você viveu era o mais importante para eles. Porque vocês viverem era um perigo. E não saber como vocês fizeram isto um perigo maior.
Poderia morrer. Mas veria você, veria Shaimma, e diria o que para vocês dois?
Amanhã, ou talvez depois, Maid vai vir me pegar no hotel. Ele me obrigará a tomar um banho na força. Ele mesmo lavará meu cabelo, e depois disso, ele nunca mais sairá de lá. Eu gostarei mais do meu cabelo, com Maid lá, e conseguirei sair deste hotel. Irei até o aeroporto e voltarei para casa.
Irei para a universidade de mamãe. A esperarei na saída de sua aula. Eu diria a ela: Mamãe. Foi horrível. Mas Ciro, o tio estava lá. Eu falei com Ciro. Ela vai chorar. Porque dez anos em cima dos seus olhos farão isto com eles. Depois iremos para casa.
Iremos para casa pelo meio da rua.