terça-feira, 9 de dezembro de 2014

feijões vermelhos

Estávamos no lugar errado. E na hora certa. O que é pior. Nós os que chegamos no horário. O horário do azar. Nós os pontuais. Os que obedecemos. Enganados.

Nos disseram que aquele era o lugar onde poderíamos conseguir. O visto digo. Para que pudéssemos ficar. Quem sabe ver nossos filhos falando português nos parques assim como os balões levitam. Os balões. O homem da direita faz um com um chiclete que julgo mentolado. Ele o estoura rapidamente. É mal educado. Tão mal educado que os olhos tem só em caso de emergência. Por exemplo: alguém falar seu nome completo. Alguém que ele demorou anos para esquecer ligar surpreendentemente para seu telefone. Uma mulher maior que o mundo andar em sapatos menores que os pés que o pisam. Gostosa. Safada. Mal educado.

Nos disseram que neste endereço conseguiríamos ter os nós das gravatas prontos automaticamente. Que depois de virmos este endereço teríamos empregos. Não como os tigres que caçam. Mas como os tigres que não se deixam ser caçados. Teríamos documentos. A lei nos olhando bonito. A chance de sermos dignos também longe de casa. Mas este homem, o mal-educado, parece estourá-la tão facilmente. Depois ainda deixa um cheiro de goma de mascar velha. Ranzinza. Com essência de menta. Gozando da gente. Dizendo que tá tudo bem no ar. Só que não tá.

Porque a gente tá aqui e faz duas horas. Duas horas nesse cubículo fechado. Branco. Tão branco que é transparente. Que dá para ver o outro lado. Tão transparente que dá para ver seu passado. No outro lado, o de dentro, pessoas como nós os constroem, os limpam, os esfregam. E nas horas que as esfregam deixam ir embora pequenos arquivos de papelão onde estariam escritos: nesse dia peguei meu filho na escola e vimos um papaguaio azul. Nesse dia paguei um café a um desconhecido só porque eu podia. Tão brancos que dá até para ver o nome mais correto do desperdício. Dor.

Somos no total oito. Todos homens. Todos pontuais. Ao lado do sujeito de chiclete tem o tal de Afonso. O tal de Afonso quando entrou aqui, depois de uma hora que estávamos sentados e entendendo a diferença entre esperar e não poder escapar, chegou e disse um monte de coisa. Disse por exemplo que ele não falaria o nome dele. Porque não merecemos saber. Porque não merecemos nada. Só que na plaquinha, do lado esquerdo do uniforme dele, tá escrito: Sargento Afonso. O-. Eu sei até o sangue do tal do Afonso. Em outro momento até me atreveria a rir. Mas quem ri cria exporta tempo da clandestinidade. E a clandestinidade é ser livre. Algo tão inacessível naquele momento.  Um absurdo de tão.

O Afonso, que tem sangue, que é O negativo também tem uma arma. E essa arma tem um dono que não é nem a mão do sargento nem o próprio sargento. Eu tenho medo é desse quem. Não dele. Eu tenho medo é do absurdo. Porque na mão do absurdo os gatilhos vão nos dedos e não o contrário.

Nós estávamos em silêncio. Então entrou mais um homem. No lugar em que não devia caber nenhum. Éramos onze. Ele também estava armado e gritou algo do tipo

É o seguinte seus desgraçados. Quem aqui é Fernandes Salgado? Ninguém vai sair daqui até alguém dizer que é Fernando Salgado. Por que alguém de vocês simplesmente é. É o puto do Fernando Salgado.

Ficamos nos olhando. Nós, os pontuais. E todos parecíamos estar no chão. Porque era olhando para o chão que nos comunicávamos uns com os outros. Ali que divulgávamos nossas medidas de medo, criávamos um rinoceronte de dúvida. Furioso mas incapaz de agir. Um ou outro poderia ter de fato conversado entre si, porque falamos francês e os homens nunca entenderiam, mas ninguém ousou domar uma palavra até o fim. Teve um que começou a falar algo do tipo Tous.. mas então nosso rinoceronte soltou um rugido e imediatamente ele se calou. Mas não era nisso que eu pensava.
Feijões. Estava faminto. Fome tanta fome que quanto mais parecia que queriam me devorar eu só pensava em batatas e feijão vermelho. O feijão vermelho da minha tia que morreu anos atrás, antes da morte existir. Antes de, em Porto Príncipe. O feijão que veio dos cantos de acordar de nossos antepassados. Que nos manteve vivos mesmo quando nenhuma lupa nos achava no mapa-múndi.

Faz quase dez horas que estamos aqui e todos nós temos um buraco dentro. Um buraco que se alinhado: Um túnel de fome. Todos nós menos o Sargento Afonso que come um chocolate que ele não sabe mais veio de Guine Bissau. Que ele não sabe. Ele come, mas nem sei como. Porque o homem da minha frente acabou tendo que urinar ali mesmo e deve ser difícil ter prazer com aquele cheiro. Ele deve gostar. Ele deve até gostar. Um tipo especial de cobertura.

Vamos lá seus desgraçados. Quem aqui é o puto do Fernando Salgado. Vocês só vão sair dessa merda até alguém me dizer. Porque alguém vai dizer.

O mesmo homem, que descobrimos era sargento, repete.

Um dos caras, o mais baixinho de todos, de pele mais escura, levantou corajoso e disse Você é louco, isso não faz sentido, a gente nem nasceu aqui.

Isto é exatamente algo que Fernando Salgado diria respondeu o sargento. E deu um murro no estomago vazio. Que parecia até um tambor. O couro ali. Ressoando. Brrums.

Eu vou sair daqui e quando voltar vocês vão me entregar o Fernando. E o resto vai voltar para os seus filhos disse o homem de cinza.

Todos eles saíram. Só ficaram nós. Nós oito.

Foi quando o não premeditado aconteceu. Um dos homens se levantou e apontou para o baixinho, recém filho de uma surra, que ainda gesticulava espasmos no canto. Tão contorcido que parecia um corrimão de tão fino. Levantou, chegou perto e disse:

Este só pode ser Fernando Salgado. Foi o único maluco para dizer alguma coisa. É esse o desgraçado. É o tipo de coisa que Fernando Salgado faria.


Antes que o outro pudesse se defender, o homem o deu um. Dois. Socos. Os outros se levantaram. Estavam com muita raiva. Cheiro, urina, menta, chocolate. Como o espaço era pequeno, e não dava para fazer uma fila, fizeram um círculo. E bateram. Bateram em Fernando Salgado, porque ele era Fernando Salgado. O homem ali poderia ser uma morte, o fato é que, já era a introdução de uma.

Então, enquanto os tambores, enquanto os socos, se repetiam, lá no fundo. Espremido contra a parede estava nosso rinoceronte, agonizando, eu o via, estava doente, ferido, quase se indo. Mesmo com toda fome do mundo e por causa talvez de toda fome do mundo.

Eu gritei.

Em francês, porque a memória do medo é sempre de infância. Depois em português, porque em estrangeiro é mais apavorante. Eu gritei por ajuda. Enquanto o sangue do homem se espichava pelos cantos, o líquido também desesperados por uma saída, enquanto eu encarava o seu vermelho e a primeira lembrança que vinha eram dos feijões, também vermelhos, e de seu molho, também líquido, enquanto eu alucinava e ali estavam os feijões que tanto queria comer, saindo aos montes de dentro da barriga e da cabeça do homem mesmo assim eu gritei.

O sargento veio. Me perguntou que merda eu estava fazendo. Falei que um homem estava morrendo. Você nos chamou por causa disso? Você nos encheu o saco por causa disso? Isto é exatamente algo que Fernando Salgado faria.

Eu bem que gostaria de ter dito “mas não sou ninguém”, mas isto era inútil. O lugar era tão pequeno e nem tinham lugar para cair, mas eu desmoronei, e esta é a chave para a abertura de espaço, primeiro com a ajuda do sargento, depois veio o homem alto, depois os outros, e é claro, aquele, o pequenino, que carregando meus feijões nos braços, eles meus feijões vermelhos até que enfim, e nas pernas não hesitou de me dar uns pontapés. Uns belos de uns pontapés.

então fui dormir

eu pedi a Rebecca para que cortasse o papel para mim.

de que formato, ela perguntou.

do formato que um papel tem que ser.

então ela me deu esse negócio meio triângulo, meio losango, e porque eu amava Rebecca e porque ela era minha irmã eu disse

você estragou tudo

não posso escrever nesse papel

porque esse papel tem o teu formato

então não o posso jogar fora

você estragou tudo,

muito obrigado.