I
você está feliz. e acha que isso arredonda as curvas do dia e ele gira mais de pressa. sente o suor acomodado dos que tem apreço pelas coisas pequenas. como a sombra da árvore no dilúvio. claro que no fundo você sabe, trata-se de um caso de filantropia consigo mesmo. diferente a dar trocados para mães desesperadas nas sinaleiras, de onde sai com o nariz apitando ao céu missão cumprida, esse tipo de atividade é o mesmo que dar água as plantas do apartamento quando murchas e amareladas. Trata-se de um caso típico do "pelo menos, ninguém pode dizer que não tentei". Contudo, mesmo praticando essa pequena enganação, roubando do seu próprio bolso para sustentar um sorriso frouxo, você ainda sustenta-se leve. vai a lancheria. come sem fome um par de pães de queijo. a sensação do forno quente ainda pode ser sentido no primeiro salgado a ser devorado, e no rastro de um cometa das causas imediatas você retorna a uma sensação antiga. quando jovem, foi a Belém do Pará para uma missão da ong de seu pai. Lá, beijou uma menina. Ela não era muito bonita, porém, fervorosa, quente. Você a tomou com vontade. Deitou em sua cama como se fosse o jardim que os labirintos prometem em seu desejado interior. Você lixou sua língua em sua boca com se fosse uma causa nobre, uma missão a ser desempenhada. Depois a olhou piedosamente. Quando você foi embora, já não sentindo mais aquilo tudo, você sorriu e a menina chorou. No seu primeiro beijo você estava sozinho, mas isso você não lembra hoje. Apenas da temperatura da energia em trânsito. Você lembra do calor. Esse fiapo de memória o trouxe uma ambiência barroca e delicada. Agora você está mais feliz ainda. Sabe que viveu, essa lembrança afirma isso. Uma pequena excitação aparece de repente como uma formiga que do nada aparece dentro de sua camisa. Caminhando pelo pescoço agora. Você sente falta de pisar fundo no dia e marca-lo com uma feição sua. uma marca de mão, uma forma de pé. você sente falta de surprender-se. De chegar aos amigos e poder contar algo que os faça ficar com silêncio, um silêncio que se instaura quando a inveja trabalha. Você poderia ligar para Clara agora. Quem sabe, ir a sua cobertura. Levaria um vinho, um respeitoso, recado direto. Mas ela diria a ti que não precisa de bebida para dormir contigo e te agarraria antes de buscar duas taças. Na verdade ela te agarraria, mas só depois de completar "aliás, não preciso de nada, só de você". Então fariam amor de luzes acesas dentro do quarto e dos olhos. Mas então você lembra que Clara é uma pessoa muito direta em suas vontades. Que quando decide encontrá-lo, manda uma mensagem com apenas uma palavra e um ponto de interrogação, do tipo, "hoje?". Lembra que tudo que ela tem guardado para te dar são pontos de interrogação, e pior, sempre com a mesma pergunta. Você resonde à altura, com um simples "s", que nessa linguagem escravista dos meios digitais quer dizer "sim". Então você dirige até seu apartamento onde ela provavelmente está terminando um cigarro de maconha, sozinha. Cigarro que ela nem oferece a você. Vocês transam por meia hora e é mais fácil deduzir a velocidade do vento pelo barulho desse na janela do que a respiração de ambos. Ela pede que você vá embora antes de tomar um copo de água, e você, obedece enquanto escuta seu estojo de maquiagem sendo aberto, afinal, a noite apenas começou.